
A Copa no Qatar 2022 engendrou polêmicas desde o anúncio do local onde seria sediada. O país do Oriente Médio não tem tradição no futebol e mal tinha onde alocar os jogos. Inclusive o estádio Abu Aboud, feito de containers, se assemelha a uma arte do agora, ou happen - pensando em arquitetura como forma de Arte- e será desmontado uma vez terminada a copa, sem deixar vestígios físicos, mas apenas lembranças e fotografias de um tempo marcado por diversidade cultural em um país que ainda abriga conservadorismo em relação aos Direitos das Mulheres e das pessoas LGBTQIA+.
Embora tenha diversas críticas ao trato dos imigrantes pobres no país sede e lamente as milhares de mortes que ocorreram em todo o processo de preparação para a copa, vidas ceifadas para sediar um grande evento mundial sem intervenção de entidades internacionais ou da própria FIFA, e todas as questões polêmicas e delicadas que envolveram direitos humanos. Aponto ainda para um fato lastimável no decorrer do mundial de seleções, o jogador de 26 anos, do Irã (país próximo ao Catar), Amir Nasr Azadani, foi condenado a morte em solo iraniano. Inclusive, a cantora Shakira, que ficou marcada pelo hit Waka Waka, na Copa de 2010, sediada na África do Sul, saiu em apelo ao atleta condenado.
Infelizmente as autoridades mundiais nada puderam fazer pois um país é soberano, nem mesmo a ONU pode intervir nessa situação. Porém sanções poderiam ser tomadas como protesto ao ocorrido. Apelos estão sendo difundidos em prol do jogador que foi defender os Direitos das Mulheres em ato de protesto, nesse contexto foi até sugerido que não tivesse a final da copa por conta desse movimento em prol da vida do jogador, o que de fato não aconteceu, incorrendo na brilhante vitória da Argentina, mas em uma banalização do cenário de violência descrito.
Apesar de todas essas críticas ao background da competição, levando em consideração o respeito para com o Oriente Médio, a diversidade da cultura árabe, ao islamismo, não deveríamos generalizar pessoas e nações diversas dentro de um debate extremamente complexo que na maioria dos casos resvala em racismo e intolerância religiosa. O evento escancarou isso de uma forma enorme, principalmente com os embates de países ou de seleções que teriam origens não eurocêntricas.
Quanto a seleção brasileira tivemos a ascensão do chamado “louro pivete”, cabelos pintados de amarelo com pó descolorante em corpos de jogadores majoritariamente negros, embora alguns não se reconheçam nesse espaço. Concomitante a isso, estiveram presentes as “dancinhas”, um adentro para a “dança do pombo”, marca de Richarlyson, o nosso mais novo queridinho por tanto carisma e dedicação no campo, ofuscando um pouco o brilho de Neymar.
A polêmica da pintura dos cabelos e das danças coletivas inclusive foi colocada em pauta como falta de foco dos jogadores. Porém, corroborar com esse pensamento elitista é também reafirmar uma estética racista, uma vez que a pintura dos cabelos, os brincos e as tatuagens invocam uma espécie de ostentação retomando a tal da cultura do “cria da favela”.
No cenário brasileiro, do samba ao funk, muitos jogadores cresceram nesses contextos periféricos. Seus corpos são políticos. Eles servem de inspirações para jovens que sonham em ascenderem socialmente por via do futebol em um país subdesenvolvido que infelizmente não pensa nesses jovens em espaços de poder econômico e social.
Além de que que se adornar é algo que está presente na nossa ancestralidade, principalmente nos rituais ameríndios e dos povos afro diaspóricos. Comportamento que pode ser pensado também sobre a dança, o embalo do corpo que faz parte dos rituais e que se engendrou na nossa cultura, desde a capoeira até o samba, hoje pode ser estendida ao funk. Rebolar a bunda e mexer as cadeiras fazem parte de nossa identidade nacional tão difusa.
Nosso futebol sempre foi conhecido como arte, porque brinca com essa ginga do corpo que se movimenta diante do gramado, não são pernas duras correndo atrás de uma bola, mas um corpo que dança embalado pelo tempo. Tempo esse que foi crucial para a eliminação do Brasil na competição, mas que não nos deixou perder a bola quando o assunto é inovação diante da ancestralidade. Fato é que o dançar, o estar em coletividade, a animação sempre fizeram parte da nossa identidade brasileira e não é de agora. Quem não se lembra do cabelo de Ronaldo Fenômeno na copa de 2002?
Marcas históricas serão deixadas após essa copa do mundo que não passou nem um pouco despercebida. Fora de época, por ter sido no final do ano, marcada presença brasileira se não nos gramados ao menos em polêmicas como a carne de ouro, retomando também a essa afirmação de ascensão social de classe e raça.
A copa vai ser lembrada pelo “para lá de Marrakech” da seleção do Marrocos que conquistou o quarto lugar na competição envolvendo jogadores não brancos, oriundos de um país africano que agrega muitos Islâmicos, o que pôde ser celebrado pela torcida marroquina e por aqueles que defendem uma visão decolonial de mundo.
Nunca na história uma seleção do continente africano chegou tão longe na competição e essa marca da presença de um outro não europeu, subalternizado, ficará nas nossas memórias, afinal, quem imaginária? O fato também chama atenção para um debate sobre esse país que sofre um extremo preconceito religioso.
E o preconceito não para, chegando até mesmo na final quando o ídolo Francês Mbappé foi chamado de “macaco” por supostos torcedores argentinos, essa inclusive foi umas das críticas de quem torceu pela França. A Argentina que se vê como Europa, país com uma quantidade superior de jogadores brancos comparada com a seleção francesa, composta por maioria de filhos de imigrantes de países africanos (inclusive o próprio Kylian Mbappé) , alertando para uma não hegemonia branca europeia e para – talvez– um processo de reparação histórica, quando os imigrantes (subalternizados) tomam o poder da metrópole (de seus colonizadores).
Por outro lado, a Argentina é latino-americana e embora muitos não se reconheçam como latinos não dá para generalizar, seria a mesma coisa de dizer que o pensamento brasileiro se resume ao pensamento sulista, o que é uma inverdade quando pensamos no norte e no nordeste do país, até falar “todos os sulistas são racistas” já seria uma falácia. Fato é que o próprio craque da seleção campeã da copa de 2018 (e vice de 2022), esnobou do futebol dos países do Sul, mesmo oriundo de um contexto de filhos de imigrantes e ex-morador de uma periferia francesa, contexto que se assemelha ao cenário futebolístico latino-americano, embora saibamos que uma periferia no Norte Global é diferente do Sul Global.
Para fechar com luva de ouro, o goleiro argentino, numa atitude até machista para corroborar com o contexto cis masculino engendrado pelo evento dá um contragolpe em quem não acreditou na Argentina e insistiu na derrocada dos países do Sul Global. A seleção campeã, a menina dos olhos do finado ídolo, Maradona, mostrou um futebol de altíssimo nível tête-à-tête com a turma da torre Eiffel.
Martinez aponta o troféu da luva em um gesto obsceno remetendo ao falo masculino ereto, no que seria o famoso “chupa” e em bom baianês o “chupa minha caceta”, numa resposta para a torcida, majoritariamente branca e europeia, da França (contrastando com sua seleção de negros) que o estava vaiando. Foi um gesto de retomada de poder do Sul Global diante da hegemonia de troféus desde 2006 para países europeus.
A copa nas terras quentes do Oriente Médio pegou fogo. Não estou escolhendo lados aqui, mas apontado contradições e essas sim foram a grande estrela da Catar 2022, que entre “zebras”, goleadas e eliminações de times favoritos abriu os olhos do mundo para questões não apenas futebolísticas e técnicas, mas para direitos humanos, direitos das mulheres, para a necessidade ascensão de países do Sul Global e para respostas e contra resposta a atitudes e atos que não queremos mais ver. O futebol, como cultura mundial, dá uma amostra disso. Mudanças que poderíamos achar que eram apenas de um contexto local se estendem para o global, nem tudo é mimimi.
Imagem de capa: <https://www.metropoles.com/esportes/futebol/goleiro-da-argentina-explica-por-que-fez-gesto-de-penis-com-premio?amp>
Parabéns pelo texto, Jac! A grande mídia aponta essa Copa com mais discussões políticas e a tendência é que isso continue nas próximas...
Muito bom,Jac. Vejo pessoasque detestam futebol não dar a mínima pra competição,achando que o torneio é como qualquer outro,um monte de gente correndo atrás de uma bola. Dá pra extrair tanta coisa de um evento dessa magnitude que aa vezes o futebol fica pra