Recentemente uma notícia varreu a internet como um tsunami que invade uma região desprotegida, levando todos pelo caminho, até mesmo aqueles mais indiferentes ao jogo político. Depois do supremo tribunal federal ter anulado as condenações de Lula, tornando possível o retorno do ex-presidente nas eleições de 2022, uma esperança brotou no horizonte, quase como um milagre em tempos tão sombrios. Essa notícia foi mais do que o suficiente para gerar uma verdadeira comoção nacional, um sentimento de que as coisas podem, enfim, melhorar. Embora tenha sido ótimo Lula ter se livrado das falsas acusações que tanto o perseguiram, o curioso é a expectativa que muitos depositaram em seu retorno, além do próprio vocabulário mobilizado pelos seus defensores mais fieis. A linguagem, nesse sentido, é uma perfeita janela da alma, daquilo que pensamos, sentimos e queremos, assim como um perfeito termômetro político. Frases como: “Amém!!”, “Me belisca. Estou sonhando?”, “Talvez seja uma luz no fim do túnel”, “parece um sonho!!”, além de vários memes, representaram um sentimento de esperança generalizado, uma energia visceral que muitos nem sequer conseguiram conter no peito. Claro que essa sensação é sempre bem-vinda, principalmente em um momento histórico como o nosso, em que vírus, crises políticas e escândalos éticos combinam suas forças de um jeito assustador, mas seria possível que a esperança traga também um risco, um custo, um problema?
Apesar de Lula ser um candidato muito melhor do que Bolsonaro, com um capital político admirável, e até mesmo muito singular, é curioso como nossa matriz de pensamento não muda muito, no fim das contas, variando apenas em conteúdo, em detalhes pontuais. A expectativa de que uma figura paterna (ou materna- Dilmãe) possa acalentar nosso coração desamparado, e acolher nossos medos dispersos, parece ainda uma constante, uma resposta corporal previsível, automática. Claro que Bolsonaro e Lula representam duas figuras paternas diferentes, senão contraditórias. O primeiro é rígido, tradicional e frio, enquanto o segundo é amistoso, aconchegante e disponível. As diferenças são enormes, assim como as implicações práticas de cada um deles, mas não é por acaso que esses personagens sempre aparecem em momentos de crise, desempenhando basicamente a mesma função. É curioso, e bem revelador, por exemplo, o modo como os apoiadores avaliam Lula ou Bolsonaro, os adjetivos que usam quando se dirigem a cada um deles. Ao invés de um repertório pragmático, envolvendo aquilo que podem fazer, e as capacidades reais de administração de problemas, o vocabulário é puramente emocional, afetivo. Diante das duas figuras nos sentimos como crianças desamparadas, esperando a disciplina perfeita (Bolsonaro) ou o abraço carinhoso (Lula). De qualquer forma, Lula e Bolsonaro deixaram de ser humanos há muito tempo, transformando a si mesmos em significantes, em verdadeiras matrizes de sentido. L-U-L-A ou B-O-L-S-O-N-A-R-O não indicam mais coisas no mundo, como se correspondessem a fatos ou pessoas, mas se apresentam como estruturas que organizam nossa própria experiência. O populismo é justamente isso... quando políticos se transformam em significantes, quando deixam de ser arranjos pragmáticos de resolução de problemas e passam a ganhar tonalidades emocionais e psicológicas. Eu não sou muito fã do termo, mas parece que existe algo de pós-verdade nessa história toda, um sintoma de tempos desencantados, em que a única solução é apelar para as migalhas de misticismo que ainda restam em algumas figuras oraculares.
Além de um traço político insistente, o populismo também é um clássico mecanismo de defesa, uma ferramenta eficaz em instantes de completo desamparo. Apesar da importância prática dessa atitude, e do suporte psicológico que oferece aos envolvidos, o real problema do discurso populista, assim como sua própria virtude, é a capacidade que tem de simplificar ao extremo circunstâncias complexas. Quando se trata das ciências humanas e sociais é preciso sempre manter os pés no chão, observando, por exemplo, que a política é uma rede complexa de agentes, além de circunstâncias que brotam de formas inesperadas ao longo caminho, e não uma cadeia vertical de decisões. Associar política a governo (ou até mesmo ao estado) é uma falha grave, como se ela fosse uma esfera autônoma e com fronteiras claras. A política não é uma estrutura, mas uma malha, uma rede, um espaço disperso de decisões que jamais poderiam ser condensadas nas mãos de algum sujeito esclarecido qualquer.
Embora acredite na inocência de Lula e na competência política que ele tem, seria de uma extrema ingenuidade apostar todas as fichas em sua possível retomada em 2022, em especial se a sombra do coronavírus continuar rondando o mundo. Quando se trata da pandemia, o comportamento do brasileiro se apresenta de uma forma estranha e complexa, principalmente no descaso generalizado ao que acontece, independente da classe social, cor de pele ou religiosidade dos envolvidos. Não me refiro aqui apenas às aglomerações e ao não uso das máscaras, mas também ao seu uso inadequado, assim como o não seguimento das regras básicas de higienização (não tocar na máscara; tirar os sapatos (ou qualquer calçado) antes de entrar em casa; retirar a roupa imediatamente quando se chega em casa; tomar banho antes de tocar qualquer coisa, etc,). Embora explicações verticalizadas sejam muito atraentes (mídia, governo, capitalismo), quase como respostas instintivas de qualquer cientista humano e social, a realidade é muito mais dispersa do que parece, muito mais horizontalizada, o que demanda sempre formas transdisciplinares de conhecimento, além de uma humildade no trato das informações.
Todos estão esperançosos com a possível candidatura de Lula em 2022, assim como eu estou, sem dúvida, mas é preciso ter muito cuidado com os truques que nossa mente prega em cada um de nós. Se uma simples casa, como a minha, ou a sua, é extremamente complexa, com decisões que envolvem sempre conflitos e tantas pontos de silêncio, incoerência e instabilidade, não esperem que um país com 220.000.000 de pessoas, no meio de uma pandemia jamais vista até então, essas decisões possam ser resolvidas com facilidade a partir de alguma atitude bem intencionada. Não é tão simples assim!!!! Eu sei que é assustador acreditar que muitas coisas estão fora do nosso controle. Eu sei que é desesperador não acreditar em uma figura inteligente (ou ética) que possa resolver todos os nossos problemas. Eu sei que o populismo é atraente, eficaz, e até mesmo acalentador, mas também carrega sempre consigo riscos graves, em especial quando o assunto é pensar em estratégias concretas. Não precisamos de uma nova figura paterna, mas de um sujeito pragmático que possa administrar as coisas diante dos recursos disponíveis. Não precisamos de pessoas de bem, de bom coração e preocupadas com o povo (todos se preocupam com esse tal de povo, seja lá o que isso signifique). O que precisamos é de pessoas reais, de carne e osso, e não representações coletivas de uma demanda sentimental qualquer. Se Lula, por acaso, for o novo presidente em 2022, vai ser ótimo, mas precisamos entender que os desafios continuam, e sempre vão continuar, já que o inimigo nunca foi tão claro, óbvio e simples como imaginamos.
Referência da Imagem:
https://istoe.com.br/por-que-a-despeito-de-tantas-safadezas-lula-e-bolsonaro-sao-idolatrados/
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