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NAMORAMOS O MESMO CARA? SOBRE MEDOS E GÊNEROS

Foto do escritor: Karla FontouraKarla Fontoura

mulher sendo traída por namorado
Capa do grupo de Facebook "Namoramos o mesmo cara?"

Um belo dia, fuçando minha pouco movimentada conta do Facebook, recebo um convite inusitado de uma amiga para participar de uma comunidade chamada “Namoramos o mesmo cara?”. Na descrição, aparece o seguinte texto:


“Grupo exclusivo para MULHERES ajudarem outras MULHERES a não fazerem papel de trouxa. Será que você tem uma sócia? Junte-se a nós em um espaço acolhedor e organizado onde você pode descobrir o histórico daquela pessoa com quem você está saindo, ou confirmar o que sua intuição anda gritando…”


Fico intrigada porque minha amiga fez questão de me apresentar esse grupo, afinal não tenho namorado, nem ficante, nem conversante. Curiosa como sou, adentrei o espaço e entendi perfeitamente o fato dela lembrar de mim ao acessar essa comunidade. 


Não era apenas um espaço para mulheres perguntarem com grande liberdade umas para as outras se “Namoramos o mesmo cara”, como um teste de fidelidade sobre um namorado, um ficante ou conversante. Com muita organização e precisão, a comunidade funciona como um filtro das ciladas que os encontros feitos a base de aplicativos de relacionamento podem nos colocar. São mulheres conversando com homens online que estão com as duas orelhas em pé se aquilo que elas trocam com eles é real ou fake. 


Elas postam a foto do camarada com as iniciais do nome e uma descrição de como anda a conversa e quais são suas principais desconfianças. Após a postagem, a depender do caso, jorram comentários de outras mulheres descrevendo que já falaram com o rapaz e tiveram os mesmos medos ou até aquelas que o encontraram e tiveram uma péssima experiência, quando não acabavam descobrindo que o tal moço era namorado de alguém ou casado, com filhos. Algumas delas, no lugar de perguntarem “Namoramos o mesmo cara?” utilizam o espaço para avisar os que já namoraram, na tentativa de alertar possíveis novas vítimas do engodo. Acreditem, sempre surgem comentários de mulheres agradecendo porque estavam em contato exatamente com o fulano e entenderam que o melhor era cair fora. 


Partindo do pressuposto da proteção, acho que um dos pontos que mais me impressionou lendo as postagens da comunidade “Namoramos o mesmo cara?” são as red flags que acompanham as postagens. As moderadoras sugerem uma série de emojis que sinalizam os comportamentos danosos:


⚠️ Violência não física (Abusivo + controlador + ciumento doentio) 

💥 Violência física: Agressão, violência sexual, força sexo sem proteção  

🚨 Tem histórico criminal comprovado

☢️ Abandono de filhos: Emocional e financeiro  

🚩 Muito perigoso: Combina várias bandeiras vermelhas  

🤢 Não cuida da saúde: Tem ISTs ou não usa proteção  

🗣️ Mentiroso

💸 Golpes financeiros 

🚬  Vícios:Álcool, drogas, remédios  

💔 Irresponsabilidade afetiva

🤐 Ameaças

😔 Chantagem emocional  

👁️ Ciúmes doentio

🎮 Controle da vida


Não é espantoso perceber que os homens podem ser listados em 14 diferentes comportamentos danosos e/ou violentos? No fim das contas, o grupo vai muito além de um espaço de troca para desvendar quem estamos namorando ou com interesse. É um mecanismo de sobrevivência entre mulheres para que elas saibam com o quê estão lidando e não sofram as consequências terríveis de estarem em contato com alguém que detenha uma ou mais das red flags apontadas nessa listagem. Será um tamanho exagero existirem comunidades como essa? É tão necessário assim atribuir alertas umas às outras? As mulheres dessa geração estão mais medrosas que as de gerações anteriores?


Segundo a análise do livro “Amar para sobreviver: mulheres e a síndrome de Estocolmo social” de Dee L. R. Graham; Edna I. Rawlings; Roberta K. Rigsby que leva em conta uma vasta “literatura sobre reféns de sequestro, prisioneiros de guerra, membros de culto, prostitutas controladas por cafetões, vítimas de violência doméstica e incesto, e propõe uma teoria universal do abuso interpessoal crônico, baseada no conceito da síndrome de Estocolmo”, o comportamento feminino é formatado predominantemente pelo medo da ação dos homens. As características que sempre foram associadas à ideia de feminilidade como calma, doçura, mansidão e paciência seriam ferramentas de sobrevivência à contínua violência que as mulheres sofrem pelos homens, especialmente aqueles mais próximos, como membros da família, amigos e colegas. 


“A feminilidade, tanto em meninas quanto em meninos, estava associada a um medo intenso de meninos. Além disso, associações entre medo e papel sexual eram mais fortes do que entre medo e sexo biológico. Os resultados sugerem que a intensidade do medo que as pessoas sentem dos homens tem relação com os papéis que eles assumem, não só com o sexo biológico.” (p. 149)

O medo é um companheiro constante na vida das mulheres. Trago um exemplo bem didático. Um amigo meu tinha esquecido onde colocou seu carro e ficou rodando pelo estacionamento de um shopping tarde da noite à procura de seu veículo. A tranquilidade dele ao caminhar em um espaço relativamente vazio, meio escuro e esquisito, focado no que queria, sem olhar para os lados, me fez pensar que essa condição jamais seria vivida por mim ou por qualquer outra mulher. 


Lembrei de amigas minhas que tiram foto do local do estacionamento para não correr o risco de esquecerem e, claro, não caminharem sozinhas à procura de algo em um espaço propício a sofrer qualquer tipo de violência. É claro que os homens se preocupam com violência, mas nunca na mesma medida que as mulheres. Vemos isso de forma óbvia quando um casal tem filhos e, para o pai, tudo e todos são tranquilos e, para a mãe, a segurança depende de várias camadas, da integridade física à psicológica. 


Sabemos o que acontece aos nossos corpos diariamente. Vemos notícias, acessamos histórias de serial killers com uma “preferência especial por mulheres”, contabilizamos os casos de estupros, aprendemos os truques para afastar os assediadores no metrô e muito mais. Entendemos que nossos corpos, nossa existência, é um alvo constante do avanço descomunal de um homem comum que quer agarrar uma parte qualquer ou de um bandido que quer a nossa bolsa e ainda aproveita a situação para ganhar algo a mais…


Concluindo, o que essa situação nos mostra junto com as características apresentadas do grupo “Namoramos o mesmo cara?” é que privilégio significa ter o poder de não se preocupar com algo. Aos homens, cabe viver esse privilégio de não ter que pensar constantemente em possíveis cenários de violência. Como mulheres, descobrimos desde muito cedo que precisamos de mecanismos de sobrevivência na relação com os homens, mesmo em situações que deveriam ser dignas de prazer, como um encontro sexual e/ou amoroso. No final das contas, para os homens, o medo é opcional. Para nós, é vital.


FONTE:


GRAHAM, Dee LR; RAWLINGS, Edna I.; RIGSBY, Roberta K. Amar para sobreviver: mulheres e síndrome de Estocolmo social. Tradução de Mariana Coimbra. São Paulo: Cassandra, 2021.









2 Comments

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Jac Gama
Jac Gama
Oct 30, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

Mulheres protegendo mulheres. Muito interessante esse grupo! Realmente a percepção da violência nunca será a mesma para homens e mulheres.

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carlosobsbahia
carlosobsbahia
Oct 17, 2024

Excelente texto! Interessante o grupo,importante as reflexões e fundamental o alerta.

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SOTEROVISÃO
SOTEROVISÃO

CONHECIMENTO | ENTRETENIMENTO | REFLEXÃO

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