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Foto do escritorCarlos Henrique Cardoso

No tribunal, uma mensagem do além

No último dia 10 de dezembro de 2021 foi concluído o julgamento que condenou 4 acusados de terem provocado a morte de 242 pessoas no episódio conhecido como “a tragédia da Boate Kiss”, quando um incêndio na casa de espetáculos provocou a morte de centenas de vítimas por asfixia, devido à fumaça tóxica expelida após uso de fogos no recinto, ocorrido na cidade de Santa Maria, RS. No entanto, um evento chamou atenção de todos. A advogada de defesa Tatiana Borsa apresentou uma carta psicografada de uma das vítimas na tentativa de inocentar seu cliente. Daí formou-se uma encenação: a equipe defensora do réu se abraça e começa uma narração a lá Cid Moreira, com um fundo musical suave, revelando não haver culpabilidade daqueles acusados e que todos deveriam “aceitar as determinações divinas” e que “os responsáveis têm famílias e não tiveram qualquer intenção quanto à tragédia acontecida”. Apesar da apelação, a carta não entrou nos autos e os réus foram condenados em primeira instancia.


A grande questão aí é problematizar o seguinte: deveria ser permissível que fosse utilizado um recurso metafisico em um tribunal de júri? Não seria preciso resguardar as fronteiras entre um templo e um local onde se preza totalmente pelo Estado democrático de Direito?


Não é a primeira vez que se recorre a uma carta com mensagens de um desencarnado na tentativa de absolver ou condenar um réu. O líder espírita Chico Xavier já foi convidado a usar seus dons mediúnicos para auxílio nas conclusões de casos, com o magistrado concordando com o conteúdo apresentado. Portanto, é aceitável esse tipo de recurso nos juris país afora. Vejo um problema aí: como a acusação contesta a veracidade do que está sendo afirmado por alguém que não está mais entre nós?


O Brasil é o país com maior número de espiritas no mundo. São aproximadamente dez milhões de adeptos, abrangendo as religiões de matriz africana nesse montante. Já somos o maior país católico também, 64% da população professa esse seguimento. Somos o quarto país em número de evangélicos, 23% da população. Temos um número significativo de judeus, mulçumanos e budistas. Ou seja, somos um país profético e muitas vezes o sagrado rompe as fronteiras do território jurídico, cultural, pedagógico e político. Limites nem sempre são impostos e portarias, decretos, leis e estatutos são contaminados por interpretações que deveriam se manter preservadas em ambiente doutrinário. Daí os precedentes são abertos.


Se uma carta psicografada pode ser utilizada, passagens do Eclesiastes, do Alcorão, da Cabala e manifestações de um caboclo também poderiam, né? Claro que a advocacia joga com as armas que possui e se vale de todas os recursos possíveis. Normal. No entanto, o juiz aceitar mensagens do além pode deixar a promotoria em maus lençóis. E tem mais: será que todo espírito tem boa fé em falar a verdade? Mortos não podem sacanear um acusado? Obvio que um médium percebe as intenções de um desencarnado – creio eu – mas daí, as portas do outro lado já foram abertas... No julgamento da boa te Kiss, a carta continha passagens como “predestinação divina”. Soa estranho e pitoresco. Fiquei imaginando se o promotor apresenta também outro material psicografado de uma vítima não resignada, totalmente indignada, proferindo um texto duro e rascante, responsabilizando os acusados pela sua trágica passagem. E aí?


O Estado é laico, ou seja, a religião é apartada de regimentos secularizados e tem suas representações espaciais respeitadas. Como não é comum a leitura de uma cláusula numa mesquita, espera-se que rito sagrado não adentre os terrenos do judiciário. Mas não estou aqui pra ser a favor ou contra. Só estou escrevendo...



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