É muito comum hoje em dia notícias que falam de paredões, festas e outras formas de descumprimento de medidas como o lockdown. Muitas pessoas, bem indignadas, dizem o seguinte: “eles fazem esses paredões APESAR do que acontece e de todas as medidas restritivas”. Mas e se o ponto não for esse? E se os paredões acontecem não “APESAR” do lockdown, mas justamente “POR CAUSA” dele?
Existe um tipo de pegadinha nos bastidores de todo tipo de proibição, uma espécie de circuito desejante que precisa ser esclarecido. As pessoas normalmente apostam na ideia bem ingênua de que existe um abismo óbvio entre repressão e prazer, como se fossem dois polos opostos. Com o conceito de pulsão de morte, muito bem reformulado pelo filósofo Slavoj Žižek, através do jouissance lacaniano (mais gozar), esse abismo se apresenta como algo de ilusório, já que existe prazer na repressão e repressão no próprio prazer.
A psicanálise quebra completamente nossa estrutura de pensamento aristotélica, ao implodir nosso precioso princípio da não-contradição. Segundo esse princípio, Ou eu amo alguém Ou odeio; Ou sinto dor Ou sinto prazer; Ou 0 Ou 1. Apresentar dois opostos simultâneos, A e -A, não faria sentido nesse esquema de pensamento. Graças à Freud no século XX, assim como seus antecedentes em Nietzsche e Dostoievsky, essa estrutura aristotélica é quebrada, ou melhor, deslocada. Sem dúvida nosso EGO é bem aristotélico, mas não nosso inconsciente, nosso corpo. Ele obedece a uma lógica própria, assim como uma temporalidade própria, o que poderia soar como algo irracional, estranho e muito contraditório. Por conta de tanta estranheza, além dos riscos que envolve, é sempre necessário um método específico de acesso à essa lógica incomum, assim como uma linguagem adequada, penetrante e revolucionária: a associação livre e a própria estrutura do matema lacaniano.
Da mesma maneira que um motoqueiro empina uma moto a 120 km/h não apesar do perigo, mas justamente por causa dele, o lockdown produziu uma espécie de desejo de fundo, uma necessidade de viver perigosamente, na linha do perigo jurídico, assim como nas fronteiras do perigo orgânico, médico. Não é coincidência que as aglomerações acontecem mais entre jovens, entre aqueles que estão desesperados em busca de identidade, além da chance de um bom acasalamento. Viver perigosamente é definir também quem sou, assim como estabelecer essa atitude perante outros, em especial meus semelhantes, aqueles jovens que também procuram um lugar no mundo. Como disse no início desse ensaio, não existem aglomerações APESAR do lockdown, mas muitas vezes o lockdown é a própria causa dessas medidas de “resistência” e transgressão.
“Resistir” não é apenas um verbo bem intencionado que atravessa os corredores de cursos de esquerda, mas também uma estrutura identitária, uma forma de definir quem eu sou nesse mundão que me cerca, principalmente quando existem oposições. Posso não saber quem sou, mas sei bem o que não sou, ou seja, contra aquilo em relação ao qual me oponho. Da mesma forma que um significante não é nada em si, mas apenas um elemento dentro de um jogo diferencial qualquer, em um circuito dinâmico com outros elementos, minha identidade também segue essa mesma estrutura, dependendo dos termos que me envolve, assim como os obstáculos que se opõem a mim. Não existe nada mais diferencial do que jovens, do que adolescentes em busca de uma forma de identidade, um caminho no mundo. O lockdown, de um jeito bem irônico, apenas intensifica o tesão por essa jornada identitária, esse desejo pelo desafio, pela resistência, pelo contraste. Assim como a jornada de crescimento começa pela “morte simbólica” dos pais, assim como os papeis que desempenham, com as instituições não é diferente. Muitas vezes é preciso “matar” os pais e mães institucionais, como o governo, por exemplo. Esses significantes são vistos não apenas como obstáculos, mas como fontes prazeroas de desafios e amadurecimento.
Como manter os mecanismos restritivos na pandemia quando eles se tornam a própria condição do transgressor? Esse ensaio foi apenas um pequeno experimento, nada mais do que um conjunto divertido de associações (não livres). Apesar das possíveis formas de interpretação, assim como a diversidade dos mecanismos de controle, o que é preciso ter em mente é o quanto a prática humana é mais contraditória do que parece, muito mais esquisita e cheia de incoerências do que dizem por aí.
REFERÊNCIA DA IMAGEM:
https://deles.ig.com.br/sexo/2017-12-18/erecao-penis.html
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