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O PODER INSUPERÁVEL DAS HISTÓRIAS – E por que devemos questionar todas elas

Atualizado: 24 de dez. de 2024




Não foi a primeira vez, e nem será a última, que vejo em redes sociais publicações motivacionais contando a história do espermatozoide. Você também já deve ter visto algo do tipo: “se você está aí sofrendo, lembre-se que foi o primeiro entre 300 milhões de espermatozoides a vencer a corrida da vida”.


Aprendemos que é isso mesmo: o mais rápido e esperto fecunda o óvulo e vence, and we are the champions, my friends. Acontece que a coisa não é bem assim. Há pelo menos dois equívocos nessa historinha:


  • 1º: você (seu material genético) não vem somente do espermatozoide: vem metade do espermatozoide e metade do óvulo, e cada óvulo tem um material genético diferente. Então, “metade” de você venceu a corrida, mas sua outra “metade” ficou anos no útero e foi liberado no momento certo. Ou seja, você nasceu não só por ser o mais rápido, mas por saber esperar e encontrar sua outra metade na hora exata.

  • 2º: existe um papel ativo no óvulo no processo, que por meio de quimioatraentes, direciona os espermatozoides que pretende atrair. Ou seja: não é o espermatozoide mais rápido que vence, mas um entre aqueles que encontram o caminho correto, atraídos pelo óvulo.


Isso que estou contanto sobre os óvulos e espermatozoides é só um exemplo de como há muita história mal contada por aí. E o maior problema não são nem as imprecisões factuais, mas a tal da “moral da história”, tudo o que vem embutido nas narrativas que moldam nossa visão de mundo. 


Ouvimos a vida toda que vencemos a competição pelo nascimento por sermos os mais rápidos, espertos e resistentes – e se na vida adulta não estamos vencendo, a solução é evocar aquele momento, reunir forças e vencer novamente. Enfim, uma fanfic travestida de ciência que acaba justificando um modelo de sociedade competitiva como algo natural, como se nossa organização social fosse uma extrapolação de uma verdade experimentada antes mesmo do nascimento.


Agora, imagine se a narrativa sobre os espermatozoides fosse contada de uma maneira diferente. Algo como: “você foi concebido na singularidade entre resiliência, espera e atração entre seus polos feminino e masculino”. Soa estranho, meio místico, mas descreve melhor o fenômeno que a outra historinha (ainda assim, isso é somente outra história, malemal amparada pelo paradigma científico do momento – quem pode dizer a verdade final sobre o fenômeno da fecundação?).


Saindo agora desse breve tratado sobre a concepção da vida humana, pense em quantas histórias que ouvimos por aí que carregam os mesmos problemas, que distorcem fatos e promovem uma moral que ajuda a justificar a ideologia do momento. 


Isso acontece na política, economia, religião, enfim, basicamente em tudo. E nessa enxurrada de informações de redes sociais, IA, telas rolando para tudo quanto é lado, fica muito difícil destrinchar história por história. A estética convence cada vez mais que a razão, e uma mentira contada com as técnicas corretas de produção e propagação se torna uma verdade dificílima de ser desmontada.






Agora, você já parou para pensar que isso acontece não somente nas histórias que consumimos sobre o mundo, mas também nas histórias intrapessoais, naquelas “vozes interiores” que criamos sobre nós mesmos? Falo das conclusões que tiramos sobre quem somos a partir daquilo que vivemos. Exemplo: a pessoa que eu quero não me quer, logo, sou alguém desinteressante.


Muitas vezes, cristalizamos histórias sobre nós mesmos e tiramos conclusões sem tomar o devido cuidado de olhar o fato sobre outros ângulos. Uma coisa é o fato (e que às vezes é difícil de captar com precisão), outra são as análises, julgamentos e explicações sobre o que aconteceu.


A gente pode, e recomendo, tentar ser o mais objetivo e imparcial na leitura de tudo aquilo que acontece conosco no mundo. Mas, no fim das contas, cada narrativa é apenas um ponto de vista sobre os fatos. E essa escolha do ângulo de visão diz muito menos sobre os fatos e pessoas envolvidas e muito mais sobre nossas crenças pregressas.


A pessoa que eu quero pode não me querer por n motivos, mas tendemos a reforçar e reviver o que já acreditávamos – que sou desinteressante, que ninguém mais quer algo sério, que nenhum(a) homem/mulher presta, etc. Qual a verdade? A gente pode ir até determinado ponto com objetividade para enxergar os fatos e contar histórias mais precisas, mas essa leitura é sempre contaminada por nossa carga cultural e vivências anteriores.


Por isso que é importante a gente questionar todas essas histórias, de fora ou de dentro, que nos diminui como ser humano e nos coloque em um lugar de culpa, inadequação ou qualquer outra coisa que limite nossas ações no mundo. Somos colonizados por muitas histórias que atendem a projetos de poder, mas se a gente não pode mudar os discursos hegemônicos nessa era da pós-verdade, que a gente consiga ao menos rever as narrativas que contamos sobre nós mesmos.


O ano está virando e, dentre as reflexões de ano novo, fica a oportunidade da gente repensar nas histórias que criamos e consumimos. Penso que devemos defender as histórias que nos defendem, que nos potencializam, que nos conectem e contribuam para uma existência mais bonita entre a Gente – a Gente maiúscula de Caetano, a união perfeita entre espermatozoides e óvulos de nossos ancestrais.




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