Em O Mal Estar da Civilização, na Parte II, Freud descreve que a única finalidade e intenção da vida humana é a busca da felicidade. Felicidade é aumento de prazer, enquanto a infelicidade é seu oposto: desprazer e dor. O sofrimento humano se revela em três lados: do corpo, do mundo externo e da própria relação com outros humanos.
O princípio do prazer, como algo inconsciente, determina toda a vida humana. Essa busca pelo prazer que se encontra no aparelho psíquico humano, no seu subterrâneo, não encontra um mundo que esteja disposto a cooperar com o seu impulso libidinal. Satisfazer infinitamente as necessidades significa colocar o gozo à frente da prudência, trazendo logo o seu próprio castigo (Freud, 2010).
O indivíduo busca, através da experiência, atender, na medida do possível, o prazer. Como o aumento de prazer é a própria condição da felicidade, não é correto afirmar que esta seja permanente. Jamais o prazer é um estado intermitente. Na verdade, são as relações que o indivíduo estabelece com o corpo, o mundo e as pessoas que criam as sensações prazerosas em instantes de vida.
Todo sofrimento humano, que é um dado subjetivo, advém da sensação individual. E o sofrimento é constituído de um certo arranjo do organismo. Em outras palavras, toda sensação de alegria é um tipo de reação das células e tecidos em interação, na visão do neurologista austríaco.
Como é possível diminuir o ímpeto voraz do princípio de prazer? Sublimando, escoando essa energia com uso de substâncias psicoativas, na meditação, na vida contemplativa, na arte, na ciência, na filosofia, na religião, no amor. No entanto, Freud alerta que a energia libidinal é muito mais forte do que toda tentativa que o Eu busca para dominar o instinto.
A sublimação do instinto é um caminho louvável para domesticá-lo. É a tentativa de deslocar o ganho de prazer para fontes de trabalho psíquico e intelectual, como a arte e a ciência. Contudo, mesmo com a capacidade de refrear os impulsos, jamais o ser humano torna-se realmente livre da dureza e sofrimento da existência, pois o corpo ou o próprio mundo externo podem causar dor. Mesmo no impulso de satisfazer todas as vontades, a busca incontrolada pela felicidade é refreada na vida em sociedade, que impõe limites aos comportamentos ditos inaceitáveis.
A felicidade, imposta pelo princípio do prazer, não pode ser completamente atendida. A civilização desenvolveu mecanismos amortecedores para a ação individual, sem a qual seria difícil conviver. Mas, ainda assim, é impossível para a sociedade impedir ou castrar toda a tentativa do id para buscar, cegamente, o máximo de felicidade. Também é impossível abandonar a fonte de prazer.
Aquele predominantemente erótico dará prioridade às relações afetivas com outras pessoas; o narcisista, inclinado à autossuficiência, buscará as satisfações principais em seus eventos psíquicos internos; o homem de ação não largará o mundo externo, no qual pode testar sua força (Freud, 2010, p.28).
O que é o neurótico? É aquele que não consegue lidar com as questões que surgem em sua vida. O corpo não tem capacidade de transformar o princípio de prazer no princípio de realidade - experiência com o mundo exterior. Isso gera um déficit de responsabilidade social, de que é preciso ter consciência na renúncia de determinados prazeres em favor de algo que seja menos prejudicial ao bem comum.
Nosso segundo autor, Baruch Spinoza, filósofo do século XVII, na obra Ética, descreveu que a felicidade é aumento de potência. Potência de agir ou conatus é uma energia, ou instinto vital, existente em cada um e em todas as coisas do mundo. É um impulso de auto conservação e afirmação da vida. É algo inconsciente. A potência de agir é a tendência, um esforço infinito, que todo ser faz para perseverar na existência. Todo ser vivo quer ser ativo e existir, quer ser mais.
A potência de agir pode aumentar ou diminuir de acordo com os encontros, os instantes de vida. Quanto melhor os encontros, mais a potência salta para um estágio de maior perfeição, passando para ideias mais verdadeiras ou adequadas das coisas. O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída (Spinoza, 2015).
A vida é baseada nos encontros. Bem e mal são sentimentos que nascem dos encontros com outros corpos. O que dimensiona os sentimentos da vida é aquilo que afeta a cada um em dado momento, em instantes de vida. Logo, bem e mal não existe em si. É a potência de agir que mensura o que alegra e entristece.
Tudo que é contrário à natureza, à potência, limita o ser particular, diminui a vida, torna impotente. Tudo que alegra é amor; tudo que entristece é ódio. Em outras palavras, a virtude humana é fazer com que a potência da alma e do corpo, inerente a cada um, e munido da mesm substância, eleve ao máximo o conatus, sem ser castrado por causas externas. A impotência de agir é semelhante a morte: a negação da ação, da vida.
Para Spinoza, o ser humano é capaz de elevar-se a um estado de espírito que evita a todo custo a tristeza, decorrente dos maus encontros, e que tende a diminuir a sua potência. O mais elevado gênero de conhecimento que pode alcançar o homem é a intuição ou ciência intuitiva. Neste nível, ele começa a compreender a essência de todas as coisas: a natura naturans, Deus, sustância infinita, o ser incausado.
O sábio é aquele que maximiza os encontros felizes e age para promover a felicidade dos outros. O sábio entende que as relações com o mundo são 'aparentemente' casuais[1], não há como prever tudo que ocorrerá na contingência da vida ordinária. Mas, ele pode começar a compreender causas e efeitos das influências do mundo sobre si.
O estado de beatitude humano é alcançado quando age de acordo com a sua natureza, de perseverança no ser - de alegria constante da vida. Isso o aproxima da liberdade, da sua própria essência. O homem livre age de acordo com a eternidade. Não há contradição entre determinação (natureza naturante) e liberdade. Age determinado pela potência divina, e não mais pelos afetos fortuitos dos encontros. Nessa profundidade intuitiva, no mais elevado grau de conhecimento, ele alcança a plenitude, a verdadeira felicidade.
Há diferenças claras entre o pensamento de Freud e Spinoza. Contudo, há um ponto em comum que merece atenção. O princípio de prazer, ou a energia libidinal de Freud, se aproxima do conceito de conatus. É possível perceber que ambos são instâncias inconscientes que desejam maximizar o prazer, aumentar a felicidade. Mas Spinoza tem um olhar mais positivo sobre o conatus, pois, como essência da Substância (Deus), não pode haver nada destrutivo quanto à sua infinita necessidade de existir, de perseverar. Para Freud, há um instinto de morte no princípio de prazer, uma descarga pulsional ausente de estima para com o objeto e para com o próprio ego, visando um movimento cego de destruição e autodestruição. Na parte V, em O Mal-Estar da Civilização, o autor descreve o impulso cego e destrutivo, da seguinte forma:
O quê de realidade por trás disso, que as pessoas gostam de negar, é que o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender, quando atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho se recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para afligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo (Freud, 2010, p. 49).
A concepção de Freud dialoga com a visão negativa da espécie humana, do filósofo inglês, Thomas Hobbes, quando aponta que naturalmente o homem é lobo do homem. O papel da sociedade seria de civilizá-lo e obrigá-lo a agir de acordo com um bem comum. Spinoza diz que a felicidade é a capacidade de alcançar autonomia. Tudo que afeta o homem superior não o abala, pois está consciente de que a todo instante atinge a maturidade de ter consciência dos afetos. E é na consciência dos bons encontros que o indivíduo aumenta a felicidade, torna-se virtuoso. Já para o pai da psicanálise, a maximização da felicidade é simplesmente o instinto agressivo do princípio de prazer em ação, danoso para o indivíduo, pois pode gerar a sua auto aniquilação, e prejudicial para a sociedade, pois impulsionia a barbárie.
_________________________________________________________-
Notas
[1] Para o autor, tudo é necessário , a contingência não é causa.
Fontes.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Trad. Paulo César Souza In: O Mal-Estar na Civilização, Novas Referências Introdutórias e outros textos (1930-1936) – Coleção Obras Completas. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, v.18, 2010.
SPINOZA, B. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
Que texto legal. Apesar de parecer pesada essa versão de Freud, eu entendo que o ID é bem animal e spinoza está mais perto da humanidade.