Imagem: Divulgação, SBT / Purepeople. Retirada do Portal Terra
Quem quer dinheiro? Ora, todos, todas e todes! Ninguém instrumentalizou tanto esse desejo legítimo em nossa vida sofrida de viver no Brasil como Sílvio Santos. Na cobertura da grande imprensa da morte do maior apresentador da televisão brasileira de todos os tempos, muito se falou de sua alegria, sua capacidade de comandar a plateia e tudo mais, mas creio que parte importante de seu legado passou batido:
Se a gente olhar com mais frieza para Senor Abravel e menos para Sílvio Santos, veremos que se trata, basicamente, de um bilionário que fez o grosso de sua fortuna como banqueiro e dono de cassino. Que seria a Tele Sena e o Baú da Felicidade algo muito além de uma aposta, uma esperança de pessoas para melhorar de vida – com as probabilidades para isso acontecer, óbvio, a favor da banca?
Analisando o teor dos programas do Sílvio Santos, o mote de inúmeros sucessos (Topa Tudo por Dinheiro, Show do Milhão, Roda Roda Jequiti, etc) era isto: variações sem fim de pessoas tentando ganhar dinheiro. E o Sílvio como o cara rico distribuindo aviãozinho de dinheiro e barras de ouro. Tudo isso alimentando o imaginário popular de que é possível ganhar dinheiro com os produtos de Senor Abravanel, seja com sorteio, participando dos programas ou recebendo o investimento de volta em mercadorias no Baú da Felicidade.
Agora, olhemos para 2024 e a epidemia das bets que assola os brasileiros. Segundo estudo do Banco Itaú, os brasileiros perderam 23,9 bilhões de reais (R$23.900.000.000) em sites de apostas nos últimos 12 meses, o que equivale a 0,22% do PIB. Difícil ter a dimensão do que isso representa, mas, sim, é dinheiro pra c******. Mais que o dobro que o orçamento anual de 2024 da Prefeitura de Salvador, para você ter uma noção.
E se você olhar a estética de muitos jogos de cassino, verá um tom de positividade e alegria que talvez lhe soe familiar... Guardadas as devidas proporções da mística dos anos 80 e 90 em relação a agora, não deixa de estar em ritmo de festa o jogo do tigrinho e várias propagandas de casas de apostas na televisão.
Tudo gira em torno da excitação, da expectativa, o suspense, a emoção de poder ganhar um dinheiro fácil. E saiba que, literalmente, existe um jogo de cassino chamado Deal or No Deal (Topa ou Não Topa), além de outros jogos de cassino ao vivo, com apresentadores e tudo, girando uma roda premiada.
Caso ainda não esteja convencido sobre como essas coisas se relacionam, veja só: o Grupo Sílvio pediu autorização para entrar no mercado de apostas. O legado do aviãozinho irá, agora, para o jogo do aviãozinho, do tigrinho, para a fezinha em jogos de futebol, corridas de cavalo e tudo mais.
Isso tudo mostra que Sílvio Santos tem impacto direto na cultura da aposta em nosso país, hábito que só desgraça a vida do mais pobre, como bem demonstram Eduardo Moreira, Rita Von Hunty e outros comunicadores progressistas. Mas para os barões da grande mídia, problema nenhum, pelo contrário: ele é o cavalheiro perfeito que todos devem se inspirar.
Um exemplo para a grande burguesia
Acompanhando a cobertura da grande imprensa sobre a morte de Sílvio Santos, a gente vê que pouco importa quem foi Senor Abravanel. A fraude do Banco Pan Americano, o apoio dele aos militares e a todos os governos posteriores – ele que se autodeclarou office boy de luxo do governo –, a tentativa patética de ressuscitar a semana do presidente com Bolsonaro, e a já citada fortuna obtida com o jogo do tigrinho da época, tudo isso, ah, é o de menos, deixa para lá. E deixa para lá também todos os casos de racismo, misoginia e sexualização infantil que ele cometia sem pudor algum em seus programas.
O que vale mesmo para a mídia burguesia é essa fanfic de que Senor Abravanel veio de uma família pobre, que foi de camelô a bilionário pelo próprio esforço, visão de negócios, inovação, o perfeito mito do empreendedor. E que se ele conseguiu, você também, pobre trabalhador, pode.
Não é de se espantar, portanto, toda a exaltação acrítica de Sílvio Santos pelas emissoras de televisão. São concorrentes até certo ponto, mas defendem o mesmo projeto de superexploração do trabalhador brasileiro. Senor Abravanel é a grande burguesia maquiada de carisma, bom humor, memória afetiva, e claro que a grande mídia não ia deixar passar a oportunidade de reforçar o que Sílvio representa.
Agora, se você chegou até aqui neste texto, talvez esteja revoltado pensando: po***, esse colunista comunistinha está diminuindo toda a genialidade do maior mito da televisão brasileira, toda a visão empreendedora, toda a capacidade de dialogar com o povão que só o Sílvio tem, reduzindo ele apenas como um conservador e dono de cassino?
Ora, esse imaginário do gênio Sílvio Santos todo mundo já sabe, mas a faceta que eu trouxe do Senor Abravanel vi pouca gente trazer. Seres humanos são multifacetados e eu também gosto de algumas coisas do Sílvio – era fissurado pelo Show do Milhão, ainda hoje assisto uma pegadinhas com Ivo Holanda e me amarro na risada do Sílvio.
Mas toda essa mística em torno do dono do picadeiro (no sentido mais nobre do termo), encobre esse outro lado da realidade e reforça uma imagem que só beneficia os donos de bets, donos de emissoras, donos de banco, enfim, quem tem o dinheiro na mão e quer conquistar a simpatia do cidadão com circos e migalhas.
Por mim, vem pra cá quem que quiser dar risadas no circo televisivo e vai para lá, bem para lá, idolatrar bilionário lambe botas de milico em um dos países mais violentos e desiguais do mundo.
Texto importante, meu caro! Gostei!
Muito importante trazer essa faceta de Sílvio e mais ainda a conexão entre os jogos que ele fazia e o vício em bets de hoje. Essa é a hora. Porém,dificilmente isso vai ser dito logo após sua morte. Veja,geralmente quando qualquer pessoa morre surgem boas lembranças e as lamentações da finitude que nos atingirá. Depois vem as derrocadas,isso é comum. Imagine se quando Pelé morresse só lembrassem da filha que ele renegou? No mais,excelentes ligações e arguições.