Hoje falarei sobre o livro Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil, do professor Luis Felipe Miguel, especificamente o capítulo 6, O triunfo da Antipolítica. Uma breve resenha que nos ajuda a pensar sobre a desdemocratização e os problemas da política contemporânea.
O autor começa questionando, ainda em 2021, como um governo tão desastroso, de Jair Messias Bolsonaro, manteve uma popularidade em torno de 30%, segundo as pesquisas da época. Certamente, uma parcela desse eleitorado é de fanatizados, muito deles instrumentalizados pela nova direita organizada, ou a alt-right (direita alternativa).
Um dos componentes dessa nova direita é o anti-intelectualismo agressivo. Isso se alinha com a questão da ignorância que assolou o período da pandemia aqui no Brasil, pois municípios mais atingidos votaram em Bolsonaro, corroborando com o negacionismo e conspiracionismo (ex. vírus chinês para dominar o mundo) reproduzido pela extrema direita internacional.
Fala-se atualmente da pós- verdade e o conjunto de problemas que carrega consigo. Jayson Harsin[1] é um dos estudiosos do tema. Ele desenvolveu três tipologias: 1 – epistêmico: múltiplas reinvindicações de verdades concorrentes; 2 – fiduciário: perda de confiança nos dispositivos de saber (o que é a verdade das coisas); 3 – ético-moral: desatenção deliberada ou uso intencional de informações falsas com a cumplicidade da audiência (saber o que o público deseja reforçando crenças).
As mídias sociais fortalecem visões de mundo e informações adequadas psicologicamente ao leitor. Elas operam para robustecer a tendência da psicologia humana de evitar a dissonância cognitiva.
Primeiramente descrita por Leon Festinger em 1957, [...] a dissonância cognitiva se refere a um mal estar provocado por um conflito entre o que uma pessoa pensa, o que sente e o que faz. É o caso da pessoa que se vê como honesta, mas se pega mentindo para não ter que dar maiores explicações, e depois acaba se sentindo mal por isso. [2]
As bolhas sociais acolhem discursos dos mais disparatados, com estatuto de verdade incontestável. O WhatsApp e o efeito da espiral do silêncio, discutida por Elisabeth Neuman, uma cientista política alemã, mostra que as pessoas são inibidas a se manifestarem com um ponto de vista contrário a seus interlocutores. É espiral porque à medida que os divergentes se calam, a impressão de unanimidade se avoluma. Portanto, cresce o constrangimento para dissentir.
A extrema direita aproveita esse espaço, ante a impossibilidade de supervisão pública, para escalar suas narrativas. A grande mídia foi também responsável por “normalizar a linguagem fascista” ao convidar pessoas não comprometidas com as democracias, pois o objetivo era derrubar o PT do governo. Uma aliança tácita entre mídia mainstream e extrema direita.
A nova direita não possui um movimento de massa disciplinado. O que voga aqui é o anti-estatismo. Falta um nacionalismo crível: são entreguistas e submissos aos EUA. Mas há semelhanças com o fascismo clássico: a persistência de exaltar as velhas hierarquias sociais; busca por bodes expiatórios; apreço por soluções simplistas; teorias conspiratórias; punitivismo exacerbado; violência contra os mais fracos, servindo como compensação psicológica contra as próprias frustrações. Então o autor considera melhor considerá-los no campo de uma linguagem e atitudes fascistas.
A degradação do espaço público hoje é sintoma de condições sociais que favorecem a desdemocratização, junto ao novo ambiente comunicacional na rede digital. As mídias sociais favorecem a um mundo raso, sem aprofundamento discursivo. Elas patrocinam o pânico moral -central na agitação política da nova direita.
Pânico moral mexe com sentimentos e com o nosso eu, com valores, identidade. Desloca nossos medos e ansiedades para outros grupos, considerados como “demônios populares”. Tudo isso é contrário ao debate público racional, no campo da argumentação.
Conservadorismo moral (contra o aborto e a chamada ideologia de gênero) e punitivismo penal (que ataca direitos individuais) são instrumentos utilizados por grupos autoritários que mobilizam seu público cotidianamente. Esse tipo de pensamento e ação é um apelo direto ao maniqueísmo e ao apagamento de causas estruturais.
Para as democracias, é difícil comunicar-se com o público mostrando a complexidade do real. Não é fácil expressar conhecimento profundos em frases curtas, como memes e twites – tão bem usados pela extrema direita.
O déficit de educação política popular piora o uso adequado da internet. No Brasil sempre se inventou a efetividade de curto prazo, e a educação política sempre esteve em segundo plano. O PT não incentivou a politização da sociedade como um todo. Insistiu na tese de que todos ganham, eclipsando os conflitos sociais profundos da nossa história. As políticas públicas foram desenvolvidas com menor debate possível. A consequência disso foi a adaptação costumeira das correntes discursivas dominantes.
O PT não se contrapôs no enfrentamento da diluição da identidade classista, nem ao avanço do individualismo e muito menos ao mito popular do empreendedorismo. A lógica do partido no governo sempre foi de obter, no curto prazo, ganhos imediatos para si e aos grupos excluídos. Mas há custos sociais nisso: não se cria raízes políticas populares. O que se faz é incluir pessoas pela via do consumo sem contestar o modus operandi da sociedade capitalista.
Por sua vez, Bolsonaro construiu uma base não desprezível, muito por conta da influência do falecido pseudo filósofo e influenciador Olavo de Carvalho, com seus cursos online, canal no Youtube e best-sellers publicados. Olavo foi muito influente na internet no início do século XXI, no Brasil. Suas ideias beiravam a um cristianismo reacionário e saudosismo autoritário, além de críticas agudas ao que ele chamava de hegemonia da esquerda no Ocidente, que estaria degradando os bons costumes e a ética cristã. O PT seria um dos grandes representantes da visão de mundo comunista, contribuindo para um suposto naufrágio civilizatório.
Ainda, Bolsonaro se associou ao fundamentalismo religioso, que não é nenhum primor de coerência, diga-se de passagem, mas que soube ver no capitão a oportunidade de ter uma voz no Executivo, além da bancada evangélica já construída durante a segunda década deste século, no Congresso, para ter mais capital político e econômico. Junto a isso tudo houve o alinhamento com a extrema direita, associada com o movimento internacional, e sua voracidade contra o fantasma do comunismo.
Há no Bolsonaro uma ciência por trás dos seus atos: é a glorificação da autenticidade, do simplismo, a falta de polimento cultural, o anti-intelectualismo, a pobreza estética para o público.
O antipetismo e a ascensão de Bolsonaro produziram militâncias aguerridas, criando um pânico moral na sociedade. Nesse período de governo, houve perseguições a atores e grupos sociais que eram supostamente considerados como inimigos da pátria e dos bons valores.
É importante falar sobre a antipolítica, tema do capítulo. A antipolítica é a própria negação do debate público. Quando cada um traz verdades absolutas, inquestionáveis, não negociáveis, não há interlocução, mas a completa recusa do contraditório, da diferença, logo de uma busca por compromissos. O Brasil foi e continua sendo contaminado pelo elemento religioso na esfera pública política, o que não contribui para o conflito, tão salutar na política.
O discurso da direita brasileira tende hoje ao extremismo, capturado por pensamentos disruptivos e agressivos. Antes havia uma direita envergonhada após o fim da Ditadura. O que há hoje é uma enorme regressão, que apela ao mundo autoritário, contrário ao respeito aos direitos humanos, com aumento da intolerância e da violência a todos os grupos, principalmente aqueles que já sofrem historicamente pela exclusão de direitos, tais como as mulheres, negros, indígenas, população LGBTQUIAP+ e idosos. Bolsonaro e o bolsonarismo representa o retorno do cada um por si e Deus por todos e do homem comum despido de educação e cultura, anterior ao contrato social.
Por fim, na visão de Miguel, caberia à esquerda um programa capaz de radicalizar a democracia e promover ações que visem tornar mais igualitária a sociedade, ou mais inclusiva, com vozes mais potentes e maior inserção no espaço público político, enfrentando os intolerantes e ganhando mais respeito perante a sociedade, ainda insensível quanto aos valores igualitários.
Gostaria de explorar um ponto importante para agregar. É salutar na democracia uma direita, uma direita civilizada, que respeite as regras do jogo e esteja atenta ao aperfeiçoamento da sociedade. Precisamos de uma direita liberal e conservadora que não ignore as pautas sociais e não esteja desconectada dos problemas históricos e culturais do país. Logo, não é só a esquerda, como parece sugerir o autor, que pode contribuir para aperfeiçoar a democracia. É melhor um antagonismo saudável entre direita e esquerda democrática do que entre esquerda e extrema direita. Em outros termos, para enfrentar a antipolítica promovida pela nova direita disruptiva, é melhor fazer política com os adversários históricos.
Miguel vai sempre no sentido de colocar uma certa esquerda como bastião do progresso social, em uma democracia pós-liberal, o que exclui, portanto, os liberais e conservadores nessa nova sociedade. Como fazer isso? Se é para radicalizar a democracia, a fim de evitar o perigo do retorno de governos autoritários, como fazer isso sem apoio dos liberais e conservadores que também são eleitos pelo povo? Além do mais, qual esquerda estamos falando? A que está mais preocupada com as questões de identidade/reconhecimento ou aquela que têm como eixo central a luta de classes e o fim do capitalismo? Como fazer ambas dialogarem? Ainda, a nova esquerda está alinhada com a essência do liberalismo: a valorização e respeito pela liberdade de expressão, liberdade nos mais variados sentidos. Toda forma de igualdade é demonizada como discurso do universal, de uma visão de colonizador, na medida em que padroniza a partir de um certo lugar.
Para encerrar, apesar de concordar com uma democracia pós liberal, que descentre o indivíduo da posição de instituição primeira, e, também, desacreditar no capitalismo, como forma de produção mais propensa à justiça social, pergunto: qual valor comum que pode dar conta de reestabelecer um consenso entre as partes numa sociedade pós liberal? Será que a igualdade, nos termos democráticos, virar depois? Será que não aparecerá uma nova ordem baseada em novas hierarquias? A ver, não há como profetizar o porvir.
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Link da imagem: https://www.amazonamazonia.com.br/2022/08/27/salvacionismo-elitista/
Obrigada por resumir livros tão importantes! Estou muito curiosa sobre como os estudiosos estão analisando esses fenômenos políticos dos últimos anos. Esse, em especial, me fez lembrar esse vídeo que está viralizando de um cara conversando com apoiadores do Trump que argumentam que ele ainda é presidente do país:
(a partir do 3:37 - https://www.youtube.com/watch?v=4oXZXT3D0UE )
Resenha muito bem feita. Gostei do questionamento sobre qual seria a posição dos liberais e conservadores nesse entrevero bolsonarista todo, porque pela teoria ambas as posições rechaçam esse extremismo tosco da direita alternativa (inclusive o Garschagen, notório conservador, sempre se manifestou frontalmente contra Bolsonaro). Resta saber, realmente, como que esse xadres se resolve, sabendo que ambas as posições tem muitas ressalvas a programas sociais e a medidas governamentais mais firmes contra a desigualdade e de intervenção econômica para enfrentar essas questões. Como que se radicaliza ou se fortalece uma democracia, quando se tem uma história marcada pelo autoritarismo e pela baixa cultura política média brasileira? Ainda mais com uma direita (ou um segmento liberal, assim sendo) muito apegada à manutenção…
Texto bastante informativo. O que me chama atenção é que muitas vozes do olavismo ainda estão destacados,eles mesmos engenheiros do caos! A nossa opinião pública não enxerga o próprio umbigo e depois quer dar exemplos de democracia!