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OS “CORRERIA” INVISÍVEIS DO CARNAVAL DE SALVADOR





“Acabô ô ô ô! A – ca – bô! ...” Valeu, meu caro turista! Mas (oficialmente) a nossa festa acabou. Foi massa, né? Mas... Até o ano que vem! Findamos um mês festivo e já estamos saudosos. Iniciamos março ressaqueados, mas logo pegamos no tranco, porque as contas chegam e a merenda dos “minino” não pode faltar.


O verão em Salvador é singular, o sol e as marés quentinhas são encantos para turistas e sirenes de alerta para o povo da terra, enquanto os visitantes deslizam pelas ruas ao toque ritmado do afoxé, os soteros apressam os passos para garantir o corre e levar um troco para casa.


Os “Correria” não param, começam no início do verão, por volta de novembro, nos cadastramentos para as festas da virada de ano, seguem reto para as lavagens, passam pelos inconclusos ensaios pré-carnavalescos e quando o regente momesco pega a chave da cidade, aí o couro come. São oito dias que mulheres e homens só voltam para casa na Quarta-Feira de Cinzas, depois do arrastão (Que nem é roubo de galera como pensou a moça sudestina. Sabe de nada, inocente!) uma prova de resistência, digna de atletas de elite.


O ritmo é apoteótico, mas não tem nada de poético, pois o ronco da barriga vazia não tem lirismo, mesmo tendo sido cantado, muitas vezes, em versos por trovadores entediados das suas vidas preguiçosas de privilegiados.


Sem querer azedar o feijão de ninguém nem estragar lembranças do prazer de sermos inundados pelo quarteto da felicidade enquanto dançávamos ao negro toque do agogô, pensemos na labuta do trabalhador informal do carnaval. De cordeiros a catadores de latinhas, o que presenciamos ano após ano são pessoas que estão nas ruas para gerar algum dinheiro, artigo escasso na luta diária.


Os que acompanham a dinâmica vivenciada por vendedores ambulantes sabem que é uma condenação de Sísifo. Tal como o rei astuto que enganou a morte, o trabalhador ambulante inicia a sua jornada pela sobrevivência hoje, mas sabe que começará tudo novamente amanhã, numa luta para continuar existindo em meio a um desconexo sistema de burocráticos cadastramentos e licenças para trabalhar no carnaval.


Aqueles que recebem a concessão podem ocupar um pedaço de chão e, somente nele, estão autorizados a comercializar os seus produtos. Enquanto um contingente é liberado, outro tenta a sorte de vender bebidas e alimentos sem ser retirado do circuito ou sofrer apreensões. Se de um lado, alguns trabalhadores entram em estado de vigilância para não terem seus espaços invadidos, do outro, trabalhadores estão sempre alerta para a possibilidade de serem abordados por agentes de fiscalização.


É muito trabalho para muito pouco descanso. A precarização do trabalho no país compromete a compreensão do trabalhador sobre as suas condições, calejados pela vida e descrentes de insurgências, performam gratidão pela oportunidade de ter mais um dia de pão, enquanto instituições de poder se eximem da responsabilidade de estabelecer e cobrar contratos trabalhistas justos que garantam direitos à mulheres e homens que, por estarem sem registro formal, ganham as ruas por conta própria.


A falta de trabalho vulnerabiliza um sujeito e toda um grupo familiar que tem suas necessidades e oportunidades interditadas pela deficiência na subsistência. Se uma família não tem uma renda básica, um jovem tem comprometida a sua possibilidade escolar, por exemplo, afinal todos sofrem com riscos em face de maior exposição a condições adversas.


O carnaval recruta mulheres, homens e, até mesmo, crianças para estarem nas ruas espremidos entre regulamentações institucionais públicas e privadas. As mãos dos trabalhadores, quase sempre pretas, têm pouco alcance quanto a possibilidade de fazer escolhas e deliberar sobre o seu trabalho, até porque, onde vender e a marca do que vender são acordos feitos por outros.


Saem de casa sem previsão de quando voltarão, carregando incertezas, mas também esperança de boas vendas. São pessoas que muitos olham e poucos veem, são braços e pernas ágeis que matam a fome e a seda dos foliões ávidos por mais um acorde das guitarras baianas que os ajudem também, quem sabe, aliviar dores suspensas.


Talvez esse seja o maior impacto que pessoas podem sofrer, não experenciar na vida o sentido de autonomia, mesmo que o chamem de relativo ou ilusório dentro do sistema econômico que vivenciamos. Mas a autonomia a que me refiro é a liberdade existencial, poder sentir e perceber as próprias emoções, ao invés de negar, fugir, fingir, porque não há mais tempo, a barriga dói, o trio já começou a tocar, a chuva logo vem... É preciso seguir.

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Grande texto! Me fez lembrar de um reflexão que tive há muitos anos atrás quando namorei um rapaz que morava na Barra e eu via toda essa movimentação de famílias indo "morar" na Barra uma semana antes do Carnaval começar. Eram famílias inteiras, com idosos e crianças pequenas! Sujeitas a sujeira, violência, insalubridade. Haviam pessoas que faziam tudo na praia, de defecar a tomar banho. Enfim, uma grande lente de aumento da desigualdade social de um povo que corre nesses dias de festa para garantir o sustento por um tempo razoável.

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