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Os filmes de anti-heróis deixam os indivíduos à deriva






"não há doutrina mais otimista, visto que o destino do homem está nas suas mãos; nem como uma tentativa para desencorajar o homem de agir, visto que lhe diz que não há esperança senão na sua ação, e que a única coisa que permite ao homem viver é o ato. Por conseguinte, neste plano, nós preocupamo-nos com uma moral de ação e de compromisso" (SARTRE, 1978, p.15).


A narrativa do anti-herói tem um caráter fundamentalmente existencialista, produto de uma sociedade moderna ocidentalizada que, de modo geral, institucionalizou o indivíduo na cultura, no direito e na ética. Esse jeito existencialista consolida a antropologia do indivíduo liberal, que se apresenta como aquele capaz de seguir seu próprio trilho, pois a existência precede a essência.


O caminho traçado pelo indivíduo existencialista tem como imperativo categórico desautorizar tradições, conselheiros, guias, mentores, gurus, família, comunidade, religião e ancestralidade. Ele ou ela segue sua própria orientação, mesmo que sejam consideradas questionáveis pelos padrões da sociedade. Mas isso pouco importa, pois ele/ela é seu próprio guia.


O anti-herói aproxima-se do indivíduo moderno ocidental europeu exportado para os quatro cantos da Terra, solto das amarras hierárquicas e tradicionais medievais, como ontologias ultrapassadas, e distante das culturas de outros continentes, tais como a África e a América pé colombina, assim como o chamado mundo oriental. Ou seja, essa construção de uma nova ontologia, com toda potência de ser uma verdade absoluta, inquestionável, antropocêntrica e superior, teve e ainda tem força suficiente para imprimir um só modo de existência.


O indivíduo moderno exportado para o globo pode agora escolher tudo que absolutamente esteja de acordo com seus desejos, pois, age como dono de seu próprio nariz; não deve satisfação a ninguém, afinal é a própria medida de todas as coisas, parafraseando a famosa citação de Protágoras, sofista grego e personagem antagonista de Sócrates.


Parte da narrativa anti-heroica acaba deixando as pessoas bem mais desprotegidas, desorientadas, pois são elas próprias que devem encontrar forças internas para superar todos os obstáculos e vazios que a vida proporciona em todos os momentos. As personagens vivem em um mundo que parece com a nossa sociedade líquida de Bauman: hiper individualista, laicizada e tecnicamente gerida pelas descobertas cientificas - que não tem responsabilidade sobre a gerência de sua própria vida. Na teoria parece deslumbrante, essa vida de autogestão da existência e domínio de si próprio; mas, na prática, será que temos as chaves certas para abrir todas as portas com firmeza, orientação, clareza? E por que também não abrimos as portas?


"Não se sabe o que move as pessoas. Todas as linhas de comunicação entre as zonas consciente e inconsciente da psique humana foram cortadas e fomos divididos em dois" (CAMPBEL, 1995, p. 194).

Bem, a verdade é que os guias e as tradições acabam não servindo para nada, pois como pensam João e Maria, presos nessa trama, “elas só servem para podar a liberdade, o ato revolucionário individual de ser um artífice e construtor de um caminho particular”. Dizem: “eu consumo tudo e o quanto eu quero, sem limites; escolho ser quem sou, e dane-se aqueles que se incomodam com meu jeito de ser na vida e com minhas escolhas políticas, sexuais, ideológicas, profissionais. Não preciso escutar nada além da minha própria consciência”. Aí é que nós começamos a entender o porquê vivemos numa sociedade que prega o elevado relativismo moral; e, também, pessoas padecendo gravemente de saúde ou equilíbrio mental.


Jovens e adultos se veem desprovidos de âncoras e bússolas, e acabam se perdendo num mundo cada vez mais canibal, muito competitivo, gélido e que promove institucionalmente e moralmente a solidão. Também você começa a entender, dialeticamente, uma resistência, um movimento contrário, numa mesma totalidade, de fortalecimento de comunidades físicas ou virtuais, com bandeiras das mais complexas, e que muitas vezes não conseguem chegar num acordo, por viverem também, em tempos de globalização. E, contraditoriamente, talvez, num certo sentido, a exemplo de uma defesa exacerbada do nacionalismo e da xenofobia, o processo de desglobalização.


Jornada do Herói


"O problema da humanidade hoje, portanto, é precisamente o oposto daquele que tiveram os homens dos períodos comparativamente estáveis das grandes mitologias coordenantes, hoje conhecidas como inverdades. Naqueles períodos, todo o sentido residia no grupo, nas grandes formas anônimas, e não havia nenhum sentido no indivíduo com a capacidade de se expressar; hoje não há nenhum sentido no grupo nenhum sentido no mundo: tudo está no indivíduo. Mas, hoje, o sentido é totalmente inconsciente" (CAMPBEL, 1995, p. 194).

Em narrativas da jornada do herói, os personagens são ajudados e orientados por guias, magos, patriarcas, gurus, mestres etc., num mundo onde a ontologia é mais sólida, estável, confiável, mesmo que haja tentativas de engano ou falsidade, sempre descobertas ao longo da trajetória.


É possível entender, por exemplo, que os reacionários, ao modo deles, não gostam de anti-heróis, porque estes são existencialistas demais. O reacionário preza por um mundo antiliberal, por um mundo que apela para uma estrutura que não se ancora no indivíduo, mas em algo que lhe dê suporte, lhe mostre caminhos que o ajude a crescer na hora da queda, da dor, da paralisia, do desespero, das escolhas difíceis. E a separação entre público e privado parece não fazer nenhum sentido, tal como é a essência da República e do próprio Estado Democrático de Direito. Esse mundo do dever de cidadania por um lado, e da privatização da existência por outro, tem sido bastante questionado.


O mundo moderno fabricado pelo pensamento liberal e iluminista, pelo raciocentrismo, individualismo e liberdades naturais, pelas histórias de anti-heróis, como face de sua expressão artística e estética, em filmes, séries, livros, mas também manuais de autoajuda e autobiografia, coloca o indivíduo solto, à deriva.


Reacionários gostam de filmes que retratam a Jornada do Herói. Isso é bem interessante. Há vários reacionários jovens, adultos e velhos que adotaram o mundo ficcional, e considerado por muitos como atemporais, através das mitologias, as histórias épicas antigas, as batalhas medievais, o folclore, inclusive de seus próprios mitos nacionais, sempre no combate do bem contra o mal. As pessoas apegam-se a esse movimento contrário ao individualismo moderno.


O bem contra o mal. Conservadores e reacionários se encantam pelas histórias de Tolkien, J. K. Rowling, George Lucas, os filmes de heróis hollywoodianos, mas também as histórias antigas, em narrativas sólidas. Desprezam os filmes de Woody Allen, Godard, Almodóvar, Lars Von Trier, que deixam as histórias mais complexas e ocasionais. Reacionários e conservadores cristãos, apesar de não gostarem de Tolkien ou Rowlling, em sua maioria, também desprezam os cineastas e autores existencialistas, preferindo as histórias bíblicas, os profetas e discípulos inspirados por Jeová, e as batalhas medievais dos cristãos contra os pagãos. Enfim, em ambos, a metafísica faz parte de suas vidas.


Claro que essa retórica do bem contra o mal é instrumentalizada por politicos da extrema direita contrários aos valores da modernidade. Inclusive, isso tem sido feito por aqui. Ai também está todo um discurso populista autoritário reacionário que, sim, tem apelo, tem público, logo não minimizem.


Talvez esteja na hora de não mais ridicularizar ou menosprezar os movimentos internos que estão ganhando mais força mundo a fora ou que sempre foram resistentes ao modelos vigentes, e tentar encontrar formas de ultrapassar a ontologia dominante individualista moderna liberal.



Referências


CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995.


SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978.




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Carla Fontoura Citra dasi
Carla Fontoura Citra dasi
29 de set. de 2022

Ótima reflexão! Me fez pensar que uma das características dos reacionários é ser apoiado no machismo estrutural, que de acordo com os estudos da Zanello (2020), está alicerçado no gênero masculino pela gênese da eficácia e competição. Os heróis os inspiram porque são símbolos da eficiência e poder que querem alcançar. De acordo com a autora, essa perspectiva molda suas subjetividades e por isso os homens incorrem em atos violentos ou irracionais, para provar sua masculinidade de eficácia.

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