
Se você é de esquerda, assim como eu, provavelmente já sentiu uma sensação curiosa, ainda que nunca tenha elaborado de forma consciente. De maneira geral, nos sentimos mais espertos, mais nobres e, até mesmo, mais felizes do que as criaturas lá fora, os alienados. Olhamos com pena suas vidas, suas pobres e estúpidas vidas. Presas em ilusões e capturadas por um sofrimento contínuo, ainda não descobriram as luzes da verdade, nem sequer sabem quem são ou por quê fazem o que fazem... mas eu sei, você sabe.
Apesar dessa minha cutucada inicial, o objetivo desse ensaio não é destruir uma certa hierarquia de esquerda, já que é necessária, principalmente em momentos tão obscuros como os nossos. O objetivo, ao contrário, é usar outros critérios de diferenciação, muito além dos mais clássicos: o epistemológico e o ético. Esses dois parâmetros, como vai ficar claro nessas linhas, não representam a esquerda como um todo, sendo muito mais um reflexo problemático de um tipo específico de progressismo, aqui chamado de liberal. Apesar dos comentários de muitos por aí, não acredito que o critério de esquerda seja epistêmico (somos mais inteligentes), ético (somos mais bondosos) ou psicológico (somos mais felizes), como tanto afirmam os membros da esquerda liberal. O critério, na minha opinião, é estético, envolvendo aqui uma maior abertura para ser afetado pelo mundo, um mergulho interessante em águas cheias de possibilidade. Ao contrário da década de 60, e seu pós-estruturalismo, não acredito que essa abertura de corpo seja redentora ou traga qualquer tipo de garantia, muito menos uma metafísica de fundo... ela é uma aposta, um risco, um salto. Por esse motivo sou de esquerda, um professor militante! Não sou mais inteligente que você, ou mais bonito, ou mais bondoso, ou mais livre, muito menos mais feliz. Além disso, meu sexo não é melhor do que o seu, não tenho mais orgasmos, meu pênis não é maior. Logo, o que de fato eu sou? Eu sou mais aberto, mais disposto a me afetar com um mundo que me ultrapassa, mais disponível, ou seja, meu critério é pragmático: esse é o tipo de esquerda que sou e sempre defendi. Esse é o tipo de esquerda produtora de pontes, mudanças, ao invés do monstro ressentido criado na década de 60.
Na tentativa de fugir um pouco do campo da abstração, imagine o seguinte cenário concreto: de um lado, uma feminista liberal, defensora do aborto, e, do outro, uma mulher cristã ortodoxa, contrária ao aborto. Sem dúvida, eu apoio a posição da feminista liberal, mas por que? Seria ela mais inteligente, mais feliz, mais nobre ou mais ética do que a cristã? E a resposta é: NÃO. O feminismo deve ser defendido por razões pragmáticas e não metafísicas, ou seja, pelo nível de abertura produzida no mundo. Um corpo, agora, que pode ter maiores possibilidades (não melhores, necessariamente), um corpo sem órgão, no sentido deleuziano, na medida em que é ruptura, choque. Em outras palavras, isso significa que a defesa do feminismo liberal produz ótimos efeitos práticos, como a própria melhora da saúde pública e uma maior transparência nos processos de aborto, antes feitos de forma ilegal. Mas observe que o critério usado por mim é pragmático (estético) e não epistêmico ou ético. Mulheres mais livres não significam mulheres mais felizes, ou mulheres mais espertas, ou mulheres mais emancipadas. Significa apenas corpos mais abertos, mais disponíveis a possibilidades. Esse corpo que defendo não é aquele de maio de 68, não é um corpo redentor, metafísico... é um corpo-aposta, um corpo-mergulho, um corpo-risco. Embora precise ser defendido, a defesa não carrega uma garantia implícita.
Ser progressista, ao contrário do que afirma a esquerda liberal, não me faz melhor, mais feliz ou mais esperto do que os outros, pelo menos não necessariamente. O que existe, de fato, é uma maior abertura para novos encontros, novas experiências, sejam elas quais forem. O problema do feminismo liberal, muito bem acusado por Spivak e sua polêmica com Kristeva, além de identificado por feministas negras como Patricia Collins, é a arrogância de suas integrantes, a certeza de que são melhores, mais bonitas, mais espertas, mais incríveis, ao mesmo tempo que humilham suas outras companheiras de gênero, acusando todas de alienadas, estúpidas, escravas, etc. Não é por esse caminho que devemos seguir... precisamos de pontes e não de muralhas recheadas de arrogância... É por isso que defendo o critério estético como o mais importante no mundo contemporâneo, muito mais do que o epistemológico ou ético. Por esse motivo repito sempre: Não basta ser de esquerda, não basta a defesa de pautas importantes. Como qualquer kantiano diria, é preciso fazer a coisa certa, mas pelo motivo certo, o que muitas vezes não acontece. Muitos fazem o que é certo pelo motivo errado, o que torna a esquerda liberal, hoje, um grande problema no campo da política brasileira; uma esquerda que nunca me atraiu, desde os primeiros dias de universidade.
Referência da imagem:
https://www.diferenca.com/esquerda-e-direita-na-politica/
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