Se você ainda assiste a programação de domingo na Globo, se ainda é um millennial com um restinho de nostalgia pelas mídias tradicionais, como é o meu caso, provavelmente percebeu algo curioso nesse último domingo (25-07-2021). Juliana Diodone, ao retornar a Globo depois de um período na Record, resolveu inovar na (Super) Dança dos Famosos, assim como seu parceiro de dança, o coreógrafo Igor Maximiliano. O tema do momento era o Pasodoble, uma tradicional dança espanhola, muito marcada pela sensualidade e sintonia dos dançarinos. Ao invés do uso tradicional das roupas, com gêneros bem definidos, a exemplo de mulheres com vestidos longos e homens com calças e coletes nada discretos, Juliana e Igor seguiram um caminho diferente. Eles usaram as mesmas roupas, ambas masculinas. Quando finalizou sua apresentação, a atriz respondeu:
"Pode ter mulheres que levantem e falem: 'Poxa, eu posso ser toureira, eu posso estar em outro lugar onde eu não imaginava!'
Todos os jurados adoraram a performance, assim como o público virtual presente nas telas de fundo, com exceção da parte técnica: Carlinhos de Jesus e Claudia Mota. Claro que diante desse balde de água fria vocês poderiam pensar: “provavelmente os jurados técnicos usaram algum argumento conservador, alguma defesa até mesmo reacionária de papeis sociais de gênero ou algum compromisso cego com as regras e os procedimentos formais”. PELO CONTRÁRIO!!!! O curioso, e até mesmo surpreendente, foi que a resposta dada pelos jurados seguiu um percurso também de esquerda, ao menos nos valores envolvidos.
A resposta da primeira jurada técnica:
A licença poética é sempre muito bem-vinda, principalmente quando a gente tem ritmos mais populares, mais livres. Não é o caso do paso doble. Não é que vocês tenham faltado com o respeito a isso, mas eu acho que a gente precisa manter a tradição e a cultura do ritmo (Grifo meu).
A resposta do segundo jurado, Carlinhos de Jesus, também reforçou o mesmo ponto:
A mensagem, indiscutivelmente, é oportuna, importante, parabéns pela mensagem. [...] Mas, como a Claudia mesmo colocou, e a gente está aqui para julgar uma questão técnica. [...] Em um concurso, uma competição, é muito importante se atentar às questões culturais e técnicas (Grifo meu).
O feminismo liberal, aquele mais popular, e até mesmo uma marca de atores e atrizes da Globo, sempre teve uma tendência universalista, devendo não apenas valer para todos, mas também em qualquer tempo ou circunstância. O curioso é que esse valor de esquerda se chocou com um outro valor de esquerda, defendido principalmente por abordagens decoloniais e pós-coloniais: a diversidade cultural. Como lidar com esse dilema? Se meus valores são sempre universais, como posso ao mesmo tempo respeitar a singularidade de povos e culturas? A dança dos famosos desse domingo mostrou bem a complexidade das lutas políticas, nos levando a entender que o debate nunca se limitou a um simples “esquerda” ou “direita”, mas o quanto esses grupos lutam internamente na tentativa de definir seus próprios campos simbólicos. Da mesma forma que no veganismo, as feministas liberais, aquelas da segunda onda, levantam uma bandeira “transnacional” e “transcultural”, um tipo de projeto que não apenas pode, mas deve atravessar todo o globo, sendo muitas vezes uma meta de progresso ético. Mas e quando essa meta fere valores culturais? É preciso lembrar que o pasodoble não é apenas uma dança criada no século XVI, muito menos um conjunto de movimentos aleatórios dos pés e das mãos, mas uma marca identitária do povo espanhol, um símbolo que conecta corpos, linguagens e mundos. Os jurados técnicos pontuaram principalmente esse detalhe, esse respeito com os valores e outros elementos identitários. Ou seja, defenderam o particularismo contra o universalismo de Juliana Diodone.
Como é possível perceber, esse ensaio não tem como meta uma resposta, principalmente porque nunca foi tão simples assim. O objetivo é apenas sugerir a complexidade da situação e o quanto valores lá fora não são apenas diversos, mas também contraditórios entre si. Como lidamos com essa complexidade? Não sei!!!! O que fazer diante dessa complexidade? Não tenho ideia!!! O que nunca podemos esquecer é o quanto a vida humana é complexa, o quanto ela é um espaço aberto, dinâmico e, por isso mesmo, sempre tenso. Em outras palavras, Juliana Diodone fez certo ao revolucionar a dança espanhola? E a resposta continua a mesma... NÃO SEI!!!
Referência da imagem:
https://gshow.globo.com/realities/super-danca-dos-famosos/noticia/juliana-didone-comenta-escolha-ousada-no-paso-doble-mulher-tambem-pode-ser-sensual-vestindo-calca-e-jaqueta.ghtml
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