Uma vez, já escrevi sobre um vídeo do Porta dos Fundos,[1] e novamente surge agora uma nova oportunidade. Um vídeo publicado no dia 24 de agosto, intitulado “Polêmica da semana – Racismo”.[2] No elenco aparece Fabio Porchat, Noemia Oliveira e Victor Leal. O roteiro foi dirigido por Gregório Duviver, que é ator, humorista e colunista da Folha de São Paulo.
Porta dos Fundos é conhecido por fazer vídeos curtos satíricos, principalmente sobre a realidade da cultura brasileira, em seus mais diferentes aspectos.
O cenário da minha análise aqui é um programa de debate, com uma legenda fictícia: “racismo: verdade ou cinismo?”. Lúcia, debatedora negra, interpretada por Noemia Oliveira, começa falando sobre o racismo estrutural no Brasil. Após escutar sua fala, o apresentador diz que o canal preza pela pluralidade, e por isso dá espaço ao empresário Carlos, embaixador da Klu Klux Klan no Brasil, e criador do canal no youtube, Branco drama. O entrevistado ainda é convidado a falar sobre seu novo livro, “A solidão do homem branco”.
Carlos agradece ao apresentador, por dar espaço a uma causa silenciada, e faz a seguinte pergunta: “se existe feminista, alpinista, paulista, por que não aceitar o racista?” Lamenta-se que já perdeu cinco empregos por ser racista e não entende o porquê disso. Continua: “quem mais sofre racismo hoje é o próprio racista”. Critica as pessoas que querem silenciá-lo, dizendo ser complicado e absurdo não ter espaço para falar sobre o tema, ou exercer livremente seu comportamento.
O apresentador pergunta a Lúcia: “não é racismo ser antirracista?” Ela não entende a pergunta; e ainda se questiona como a emissora aceita trazer um cara que defende o direito de ser racista. O apresentador diz que o canal mostra sempre o outro lado da história, pois todo mundo tem direito a se expressar.
Lúcia se nega a debater com o racista, e o apresentador diz que ela está fugindo do debate. Em seguida, Carlos diz que tá acostumado com essas coisas: “por isso o Brasil não vai pra frente, vai ser sempre pra esquerda. O racista precisa ser ouvido nesse país”.
Carlos aproveita para dizer que sabe a cura da covid 19: leite quente batido com cinco ave-marias. O remédio caseiro funcionou com a tia dele, o país precisa saber a verdade.
O apresentador não entende o porquê de Carlos não poder ter sua própria opinião, e Lúcia retruca prontamente: “claro que não, gente, se a opinião dele for genocida, claro que não! A gente vai chegar onde? O que, que é agora? A gente vai debater com um nazista daqui a pouco?” O apresentador diz que haverá um debate sobre isso, e o convidado será um rabino judeu, sobrevivente do holocausto, com um nazista qualquer. O programa chega ao fim com Carlos mandando um abraço para um amigo dele nazista, e o convida para ir à sua casa, em Pelotas. Ao mesmo tempo, Lúcia sai do programa. Fim de "conversa".
O que é esse vídeo escancara e ensina a todos nós? Que programas de televisão têm convidado pessoas para, supostamente, ouvir o outro lado da história. Um lado imoral e de comportamento ilegal. Isto acontece no Brasil. Na Band, na CNN, Jovem Pan, e mesmo canais independentes, como a de Leda Nagne, ex apresentadora da TV Cultura, com seu canal no youtube, com quase um milhão de seguidores. Todos devem ser responsabilizados também por promover o aniquiliamento moral da sociedade.
A verdade é que a mídia tem proporcionado espaço a pessoas que defendem a exclusão social, a intolerância, defesa do negacionismo científico e histórico, e ataque às minorias. Tudo isso em nome do politicamente incorreto e da audiência. Vale tudo para vender a alma?
Devemos encarar que nem tudo tem dois lados. Não! Há coisas que não podem ter mais de um lado, pois é necessário manter um pacto coletivo civilizatório em favor da convivência, na construção de pontes mais sólidas.
Não podemos aceitar o individualismo extremista ou o ultrasubjetivismo avassalador que gera a desagregação social. O animal racional-emotivo gregário precisa abrir mão de desejos e impulsos que prejudique a vida alheia e o conjunto social. Tem ônus? Claro. Nascer já é um custo.
Não podemos dar voz e nem espaço a pessoas que desejam destruir ou danificar um pacto social mínimo; senão retornaremos a um estado de natureza no qual cada um é juiz e legislador em causa própria. Se você aí, leitor, não aceita obedecer a normas, então deve virar um eremita ou morar com os animais na floresta. Lá pode fazer suas próprias regras e viver como um ditador(a).
Não podemos tolerar os intolerantes! Dar corda, diariamente, a isso é aceitar como normal, como regra, o racismo, nazismo, machismo, homofobia, demofobia, misoginia, comportamentos que excluem pessoas. Isto não pode ser aceito no conjunto da opinião pública, numa ágora democrática. Voz tem poder, dissemina, prejudica, fomenta a barbárie. Uma mentira repetida exaustivamente torna-se vez verdade, já diria Goebbels, ministro de Hitler.
Meios de comunicação como a Jovem Pan, por exemplo, não podem aceitar um convidado que pregue, em sua habitual vida pública, a defesa do autoritarismo e aos valores reacionários, vide Olavo de Carvalho, que ainda tem muita voz por aí. Ou mesmo a Band, que convidou Allan dos Santos, no programa “Aqui Na Band”, um jornalista bolsonarista, dono do canal Terça Livre, investigado pelo STF por incentivar fake news. O cabra ainda responde a outro processo que apura a organização e financiamento de atos contra o Congresso Nacional e Judiciário federal, com suspeita de ter financiamento do próprio governo federal.
E o que falar lá atrás, quando O CQC, famoso programa da Band, deu espaço a um tal deputado federal tosco, pouco conhecido pelos brasileiros em geral, que defendia tortura, ditadores, que era contrário aos direitos humanos, que associou negritude a promiscuidade, e preferia ver um filho morto a ser homossexual? Eis que hoje o deputado é presidente da República.[3] Recentemente uma das integrantes, Monica Yozzi, fez mea culpa, e disse:
“Ele engloba todos os discursos de ódio em uma pessoa só” [...] Se você for na Alemanha, você não vai ter espaço na tevê para pessoas que relativizam o holocausto. Eu acho que a gente precisa começar a ter, em relação ao discurso de ódio, esse tipo de intolerância”. [4]
A lição geral, leitores, é que não podemos dar oportunidade, visibilidade, aos que destilam a incivilidade e discursos de ódio a pessoas e grupos. E não podemos dar voz a indivíduos que pregam o fim das instituições do Estado Democrático de Direito e ojerizam os direitos individuais. Isso é antiliberal? Não! Isso é uma defesa conservadora dos valores básicos da convivência numa sociedade democrática, plural, e que tolera as diferenças alinhada aos ditames da legislação.
Link da imagem: https://www.youtube.com/watch?v=E90pluaeHkU
NOTAS
[1] https://www.soteroprosa.com/single-post/2019/12/23/a-pol%C3%AAmica-do-porta-dos-fundos-quem-tem-raz%C3%A3o [2] https://www.youtube.com/watch?v=E90pluaeHkU&ab_channel=PortadosFundos [3] https://www.youtube.com/watch?v=Yw74RtoZE_I&feature=youtu.be [4] https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2020/09/4872749--monica-iozzi-assume-culpa-de-dar-visibilidade-a-bolsonaro.html
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