Quando você ouve a palavra “crítica”, o que vem na cabeça? Se o seu universo é aquele das humanas ou sociais, povoado por grandes filósofos, sociólogos e muitos outros “ólogos” por aí, provavelmente ela carrega um tom meio ressentido. “Ser crítico” significa apontar falhas, defeitos, revelando coisas desprezíveis nos bastidores. No final da nossa jornada como criaturas esclarecidas, fora da caverna platônica com suas sombras enganosas, desvendamos opressões, ideologias, violências, farsas, além de muitos defeitos na superfície de uma instituição, um grupo, uma pessoa ou uma ideia. Em outras palavras, nossa meta é mostrar que o eterno é precário, que o universal é particular, que o divino é ideológico, que o neutro é interessado, que o puro é corrupto, que o natural é histórico, que o necessário é contingente. Essa é a essência da nossa criticidade... buscamos coisas nos bastidores, mas sempre traços desprezíveis, nojentos, estranhos, contraditórios, quase como se “crítico” fosse um mecanismo de defesa, uma arma agressiva direcionada a instâncias que me incomodam, me ameaçam, me desprezam.
Por outro lado, quando mergulhamos em outras águas, como na culinária ou na arte, por exemplo, “crítica” tem um outro sentido. O crítico, sem dúvida, pode apontar defeitos, mas o núcleo de sua profissão é realçar os contornos de uma certa experiência, destacando detalhes que fogem da maioria. Imagine um sommelier experimentando um vinho. Ele é crítico na medida em que destaca os detalhes da uva, os contornos do barril onde foi armazenada, o tempo de fermentação, as variações de temperatura, e várias outras características interessantes. Resumindo, o objetivo desse tipo de crítica não é destruir um fenômeno, mas fortalecer seus aspectos mais fundamentais, ao menos enquanto meta principal. O crítico culinário amplia o campo de experiência, mergulha nas possibilidades da vida, enquanto o crítico das humanas simplifica, reduz tudo a único princípio trágico nos bastidores. O primeiro abre a caixa preta, no sentido latouriano, liberando toda a riqueza e todos os detalhes de um mundo complexo, enquanto o segundo fecha essa mesma caixa. O crítico culinário potencializa um determinado corpo, amplia completamente os seus sentidos, enquanto o crítico das humanas limita essas mesmas conexões corporais. Um é amoroso, estético, enquanto o outro é agressivo, muito ressentido.
No campo das humanidades a crítica é basicamente um MMA epistêmico, um ringue de batalha todo ele estruturado com arame e cerca elétrica, um espaço onde todos criticam todos, em um tipo de dança pervertida que apenas Freud conseguiria explicar. A “crítica” enquanto ressentimento se torna um fim em si mesmo, ao invés de algum meio específico, uma ponte. Sou inteligente na medida em que acuso, na medida em que revelo os podres do meu interlocutor. Em termos zizekianos, existe um tipo de “tesão” na crítica ressentida, uma espécie de gozo quando nossos inimigos são descortinados, quando escorregam, falham, frustram. Por trás do ódio declarado ao meu adversário, existe um prazer estranho, pervertido, algo que nos impede de pensar a crítica de outras formas. Talvez o sommelier seja um possível parceiro em nossa jornada, um mestre a ser espelhado, mas antes é necessário implodir um pouco nossas pretensões. Somos capazes disso? Eu não sei... Na verdade, nem sei se eu, o autor desse ensaio, sou capaz desse tipo de abertura... provavelmente não!!! De qualquer forma, vale a pena sonhar, vale a pena um pouco de esperança nas terras tão ressentidas das humanas e sociais.
Referência da imagem:
https://www.socialbauru.com.br/2014/11/24/o-que-faz-de-uma-pessoa-um-critico-gastronomico/
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