QUANDO O PERDÃO SILENCIA: a importância do apoio às vítimas de violência sexual
- Nieissa Pereira
- 16 de mar.
- 5 min de leitura

Uma das notícias que mais tiveram repercussão nesta semana foi sobre as recentes declarações da cantora Baby do Brasil, durante a sua apresentação (ou culto), em uma casa de shows, na cidade de São Paulo. Em um vídeo que tem circulado de forma massiva pela internet, a cantora pediu que as vítimas de violência sexual relevem os atos criminosos, em especial se o crime ocorreu entre familiares.
“Perdoa tudo o que você tiver em seu coração hoje, neste lugar. Perdoa. Se teve abuso sexual, perdoa. Se foi da família, perdoa”, disse a cantora e ex-vocal da Banda Novos Baianos.
Em sua fala, Baby levanta questões complexas sobre perdão, justiça e apoio às vítimas de violência sexual. Mais do que isso, esse tipo de comportamento nos leva a refletir sobre qual é o entendimento acerca da realidade de violência sexual sofrida por crianças e adolescentes no Brasil, bem como sobre justiça. Vale ressaltar que, o perdão é algo subjetivo e que é entendido como uma parte do processo individual de cura e superação daqueles que sofrem com mágoas ou sofreram algum tipo de violência. Ocorre que, sugerir que vítimas de um crime grave, como o abuso sexual, devem perdoar seus agressores pode vir a ser algo problemático e prejudicial, principalmente quando parte de uma figura pública com grande alcance e relevância para as pessoas.
O tom de minimizar a gravidade do trauma sofrido, colocar uma pressão indevida sobre as vítimas, que já enfrentam desafios significativos em sua jornada de recuperação, ou seja, incentivar o perdão aos agressores sem considerar o contexto da violência sofrida pode contribuir para desestimular denúncias e perpetuar casos de impunidade. Quando figuras públicas ou líderes religiosos promovem a ideia de que o perdão deve ser concedido indiscriminadamente, corre-se o risco de silenciar vítimas e proteger agressores. É essencial que o foco esteja em oferecer suporte às vítimas, garantindo que elas tenham acesso a recursos legais e psicológicos adequados, e que os autores desses crimes sejam responsabilizados por suas ações.
No Brasil, muitas vítimas enfrentam grandes obstáculos para denunciar seus abusadores, seja por medo, falta de apoio ou mesmo pela estrutura falha do sistema de justiça. Quando uma figura religiosa ou midiática sugere que o perdão é a solução, reforça-se a cultura do silenciamento e da violência institucionalizada, em vez de se promover a responsabilização dos criminosos.
“A cultura do silêncio não pode vencer! A fala de Baby expõe uma realidade brutal: no Brasil, por décadas, abusos foram minimizados, ignorados e até romantizados. O ‘perdoa’ como resposta automática só beneficia agressores e perpetua o ciclo de violência”, escreveu uma das usuárias da rede social X.
Os dados sobre abuso sexual infantil no Brasil revelam que esse crime ocorre, predominantemente, no ambiente intrafamiliar, onde o agressor, na maioria das vezes, é o pai ou o padrasto da vítima. As estatísticas apontam que as principais vítimas são meninas, evidenciando um padrão de violência de gênero.
O Brasil enfrenta uma grave crise de violência sexual, contra crianças e adolescentes. De acordo com o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, apenas no ano de 2024, foram registradas 11.692 denúncias de violência sexual contra crianças. No entanto, esse número pode ser ainda maior, pois a subnotificação é uma realidade que preocupa. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes são exploradas sexualmente no Brasil, mas apenas 7 em cada 100 casos chegam a ser denunciados. O mesmo estudo indica que 75% das vítimas são meninas e, em sua maioria, negras, evidenciando a interseccionalidade da violência de gênero e racial.
A subnotificação desses crimes está diretamente ligada a um processo de silenciamento social que impede a coleta de dados precisos sobre a real extensão e gravidade do problema. A violência sexual contra mulheres e crianças não é apenas uma violação individual, mas um fenômeno social e estrutural que fere direitos humanos fundamentais e provoca danos profundos à saúde física e mental das vítimas.
Diante desse cenário, é fundamental ampliar o debate sobre estratégias eficazes de prevenção e sobre as práticas adotadas na rede de acolhimento às vítimas, garantindo um atendimento sensível e humanizado. Além disso, a revitimização nos espaços institucionais, especialmente no sistema de justiça, representa uma barreira adicional, desestimulando denúncias e perpetuando a impunidade.
Um dos maiores desafios no enfrentamento desse tipo de violência é a identificação e denúncia dos agressores. O medo, a dependência emocional e financeira, além da manipulação exercida pelos abusadores que, em sua maioria, são pessoas próximas ou de confiança da vítima, dificultam a quebra do ciclo da violência. O estigma e a insensibilidade dos procedimentos judiciais agravam essa realidade, tornando essencial a implementação de políticas públicas mais eficazes, voltadas para a proteção das vítimas e para a responsabilização dos agressores.
As declarações da cantora Baby do Brasil geraram forte repercussão e reprovação por parte do público. Nas redes sociais, internautas manifestaram indignação, classificando suas falas como “absurdas” e “desnecessárias”. Diante da gravidade e seriedade do tema, é de suma importância que líderes religiosos e personalidades públicas tratem questões tão sensíveis com responsabilidade e empatia. Pressionar as vítimas a perdoarem não deve ser o foco principal da questão, tendo em vista de que esse é um processo individual de cura. O que deve ser levado em consideração é o acolhimento incondicional, o respeito ao seu tempo de cura e na garantia de que a justiça seja feita. Somente assim é possível construir uma sociedade que verdadeiramente protege aqueles que sofreram violência.
Mais do que incentivar o perdão, é imprescindível assegurar os direitos das vítimas, fortalecer mecanismos de acolhimento e promover políticas públicas eficazes no enfrentamento da violência sexual. O debate sobre esse crime não pode ser relativizado ou tratado de forma superficial. É necessário combater a normalização da violência, garantir que os agressores sejam devidamente responsabilizados e oferecer suporte real às vítimas.
Lideranças religiosas e figuras públicas possuem uma enorme responsabilidade social. Em vez de discursos que possam reforçar a impunidade e a revitimização, devem utilizar sua influência para promover a conscientização, a prevenção da violência e a construção de uma sociedade mais justa e segura para todos.
REFERÊNCIAS:
BRASIL DE FATO. Brasil registra mais de 11 mil denúncias de violação sexual contra crianças e adolescentes em 2024. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/05/18/brasil-registra-mais-de-11-mil-denuncias-de-violacao-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-em-2024/. Acesso em: 15 mar. 2025.
CNN BRASIL. Após pedir perdão a abusadores em culto, Baby do Brasil é criticada na web. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/apos-pedir-perdao-a-abusadores-em-culto-baby-do-brasil-e-criticada-na-web/. Acesso em: 15 mar. 2025.
NETO, Wilmar Ferreira Neves; REZENDE, Marília Gabriela Costa; DE SOUSA CARVALHO, Cíntia. O abuso sexual infantil e a cultura do silêncio: machismo, racismo e adultocentrismo em questão. Revista Periódicus, v. 2, n. 16, p. 81-92, 2021.
O "neoevangelismo" dá nisso: uma sociedade gospel alternativa. Eles vivem num universo a parte,onde tudo pode com as bênçãos de "deus".