* Por Manhana Castro
O assunto fascismo está presente nas conversas entre familiares aos bate papos com amigos(as) nos botequins. É inegável a escalada da personalidade autoritária no Brasil.
O fascismo é considerado um fenômeno de massa, embora existam indivíduos que tenham uma disposição psicológica caracterizada pelo próprio caráter perverso. O discurso e comportamento de uma pessoa fascista é fundamentado no aniquilamento do outro, seja no nível físico ou simbólico. São pessoas com o ego inflexível e conservador. A lei funciona apenas para o outro, por que "por trás das cortinas" esse indivíduo pressupõe que pode realizar o que deseja desde que seja considerado o arauto da moralidade para manter as aparências. Portanto, uma conduta com alto grau de cinismo e hipocrisia. Não aceitam as singularidades alheias. A diversidade é insuportável e o outro é sempre visto como o bárbaro, o diferente, o que não pode ter lugar no mundo.
Sigmund Freud no livro Psicologia das Massas traduz o comportamento de pessoas inseridas nos grupos que a representam: "A massa é extraordinariamente crédula e acrítica... ela vai prontamente a extremos, a suspeita exteriorizada se transforma em certeza indiscutível, um gene de antipatia se torna um ódio selvagem".
Percebemos muitas semelhanças com nosso tempo. Como exemplo podemos mencionar indivíduos que se sentem representados pelo atual governo brasileiro, que defendem o indefensável. Reconhecem o líder como um mito, são subservientes, seguem crenças baseadas em fake news, criam um bode expiatório para punir e vigiar (como exemplo o comunismo), associados a uma ausência de senso crítico da realidade, desconectados com a história do país. Negam o conhecimento, a ciência e a Arte. Negam a existência dos indígenas, das mulheres, dos homossexuais, do povo preto. Nessa perspectiva o filme argentino Cidadão Ilustre disponível na plataforma Netflix descortina um painel interessante sobre como as sementes do fascismo podem prosperar em uma pequena cidade do interior.
Daniel Mantovani é um sujeito que além de ser um célebre escritor, se sente profundamente entediado e incomodado com o fato de ter alcançado o ápice da carreira: prêmio Nobel de literatura. Por esse motivo recusa grande parte das honrarias, das medalhas e palestras. Eis, que um belo dia recebe um convite de sua cidade natal. Se sente impelido em revisitar seu local de nascimento, como uma forma de resgatar suas origens. Salas é a típica cidade interiorana, pacata e aparentemente "perfeita". Em um primeiro momento é muito bem recebido pelo prefeito da cidade e supostamente alguns amigos do passado. A aparente tranquilidade de Salas não passa de uma mera ilusão. Seus cidadãos são preconceituosos e movidos por ódio ao diferente. Daniel Mantovani é um estranho no ninho e sente que falar a "verdade" em tempos obscuros pode ser fatal. Recebe um prêmio que o transformará literalmente em estátua e cidadão ilustre de Salas. E o incômodo continua... até que a barbárie se instala e Daniel Mantovani (que poderia ser um de nós) sente o fracasso de algumas relações humanas. Sente o "peso do mundo em suas costas".
Uma sociedade que se alimenta de mitos e heróis tão encegueirada que não consegue compreender a potência da mobilização social porque sequer entendem o que é ser um cidadão. Uma sociedade presa, estática, calada, submissa. O medo é o único pai de todos os dias e seus cidadãos ilustres compram mais armas, mais armas, mais armas... perseguem aqueles(as) que pensam com racionalidade e sensibilidade. Eles odeiam tudo, eles odeiam o mundo e a si próprios. E desejam em suas perversas fantasias eliminar o outro, uma espécie de niilismo fundamentado no ódio. Negam a arte, a ciência e o conhecimento. Não entendem o que pode ser uma metáfora e interpretam tudo ao sabor das próprias conveniências. Retroalimentam o sistema através das notícias falsas e do ódio ao outro.
Nessa breve descrição do filme, reflito como a sociedade brasileira pode servir de "pano de fundo". Estará tudo perdido? Não. Alguém como Daniel Mantovani fala e reage. No silêncio sepulcral, no torpor daquela cidadezinha ele observa a plateia e diz: "COMO ASSÍDUO OBSERVADOR DA COMÉDIA HUMANA DESTE MUNDO, SINTO QUE É MINHA OBRIGAÇÃO TENTAR FAZER DESTE MUNDO UM LUGAR MENOS HORRÍVEL. SEI QUE É UMA BATALHA PERDIDA, MAS ISSO NÃO SIGNIFICA QUE VOU DEIXAR DE LUTAR". Daniel Mantovani é um personagem inspirador.
Finalizando esse texto recordei de uma frase do Giuseppe Mazzini: "sem liberdade vocês não poderão cumprir nenhum de seus deveres. Onde ela está ausente, justiça, moral e igualdade não tem mais significado". O que poderá nos salvar da personalidade autoritária senão o amor a democracia e a diversidade?
*Manhana de Castro. Graduada em Marketing e Gestão Ambiental. Autora da crônica Vozes Duplas, do livro Solilóquio.
Link da imagem: https://www.significados.com.br/caracteristicas-do-fascismo/
Valiosa reflexão! Dolorosa por espelhar questões tão cotidianas, porém, necessárias.
Quando nos distanciamos do verdadeiro lastro de riquezas - a liberdade - o respeito - a honestidade - o amor - a verdade ... esbarramos com essa intranquila e funesta convivência humana.
O desfecho do texto questiona perfeito "O que poderá nos salvar (...) senão o amor a democracia e a diversidade?"
Sigamos unid@s.
Ainda não tive a oportunidade de assistir a película citada, mas a analogia com o Brasil é válida quando percebemos que "os ratos" saíram dos esgotos e mostraram a sua face perante o chamado do seu "Flautista de Hamelin" tupiniquim.
Aplausos para essa escrita, de bom tom, de leveza, em um assunto tão importante. Estamos falando do obscuro, das verdades que não se revelam, do senso comum, da insegurança dos seres humanos em assumir suas maldades, seus pensamentos grotescos, suas necessidades de demonstrar a bondade em sentimentos ruins para com o próximo, sua espécie e outras. Querer assistir as desigualdades para demosntrar uma bondade que camufla ódio. Parabéns , Manhana de Castro!