top of page

Round 6, o ultraliberalismo social e o critério subjetivo


"Sabemos que é responsabilidade da família decidir o que é melhor para suas crianças, mas enquanto educadores temos o dever de alertar e honrar o compromisso com a Educação. Certos de sua compreensão, nos colocamos a disposição para qualquer esclarecimento que se faça necessário". (Carta da direção da Escola Aladdin, no Pechincha, Zona Oeste do Rio de Janeiro).[1]

Round 6, do diretor Hwang Dong-Hyuk, é a nova febre dos streamings. A série já bateu recorde de visualização na Netflix. Pessoalmente, acho uma excelente obra cinematográfica: cheia de críticas sociais e traz bastante discussão em relação aos problemas contemporâneos do capitalismo. Mas ela tem faixa etária. Não dá para todo mundo assistir.


Há cenas bem cruéis, muita violência e sangue com uso de jogos infantis, que levam os competidores à morte. A estratégia do sul-coreano em usar os jogos infantis é aproximar o cidadão do mundo com a cultura do país asiático. Tudo bem. O problema é quando Round 6 é visto por crianças e adolescentes, sem restrição. E de quem é a responsabilidade pelos jovens terem acesso a filmes ou séries que retratam violência explicita, avareza ilimitada e suicídio?


Bem, à primeira vista podemos dizer que a culpa é dos pais, pois cada família deve cuidar de seus filhos da forma que acharem melhor e mais prudente. A questão toda, ao meu ver, é que ao colocar essa liberdade educacional nas mãos dos pais, a gente confia, ingenuamente, na capacidade de eles serem super vigilantes e coerentes em relação a seus filhos. Mas os pais têm sabido concorrer com a capacidade da internet de cooptar seus próprios filhos? Pais têm controlado e regulado seus filhos no que fazem? Parece que não.


Não à toa, a preocupação de pedagogos, psicológicos e educadores em como as crianças e adolescentes estão sendo educadas. Depressão, suicídio, desprezo pelos valores de sociabilidade (tolerância, respeito, empatia, cidadania) são consequências de uma sociedade anômica, uma sociedade que permite que seus jovens estejam, dia após dia, mais frágeis psicologicamente, desprezando regras sociais e sem senso de responsabilidade coletiva. Mas não é só uma questão psicoemocional, é também uma preocupação política, porque tem um custo social a longo prazo.


A liberdade que se dá hoje em dia, com o uso da internet para crianças e adolescentes, é sem limites. E isto está em todas as classes, todos os tipos de famílias - tradicionais ou modernas -, nos espíritos ateus ou religiosos.


Sejamos realistas: não temos um norte sobre como os pais lidam com seus filhos. Não existe uma política de Estado sobre as relações familiares; não há orientação. Estou falando de políticas com normas e regras sobre como os pais deveriam se educar e educar seus filhos. Hoje, o critério é subjetivo. É urgente a necessidade de orientação, de como educar os pais em relação ao uso da tecnologia pelos seus filhos, e evitar a degradação da saúde mental. Sim, o mundo privado não é um mundo à parte. O hiperindividualismo familiar não nos levará a um bom lugar. Se não fizermos nada, isso pode afetar a saúde e o futuro dos jovens.


O critério não pode ser particular a cada família. Precisamos de algo social, abrangente, objetivo, padronizado, mas não totalmente inflexível. Não podemos condescender com esse ultraliberalismo social e de costumes. Até porque, leitores e leitoras, não vivemos num estado de natureza, no qual cada um faz o que bem entender. Vivemos regido por um contrato social. Quando uma criança sofre um dano, quando ela perde o senso de sociabilidade, a sociedade sofre, sofremos e perdemos juntos. Não podemos ver isso como uma estatística, uma nota de rodapé ou um acidente qualquer no percurso; isto é grave, e todos lamentamos, ou deveríamos lamentar mais.


Quando se fala de algum tipo de regulação social por parte do Estado, os cabelos arrepiam, afinal sempre haverá militantes histéricos com teses abstratas que vai nos acusar de defensores da ditadura, do totalitarismo, censurador ou coisas do tipo; esta turma corre para o velho liberalismo livre, leve e solto da diversidade das formas de experiência. Incrível que esse povo não pensa que a coesão social deve vir antes da liberdade individual. É uma postura conservadora, mas sem compromisso coletivo, o que resta é o reino da anarquia subjetiva, a verdadeira barbárie do nosso tempo.


A tese de que a diversidade irá gerar um equilíbrio ou ordem social aceitável, sem grande ônus, é uma fantasia criada pelo liberalismo ético da direita na modernidade, e adotado também pelas novas esquerdas progressistas Pós-68, no século passado. Mas a tese liberal, de que as ações individuais, leia-se, aqui, de que todas as famílias têm clareza e consciência de como orientar seus filhos - com seus modos particulares de vida e cultura plural -, gerarão alguma solidez social, não têm se mostrado verdadeira. Na realidade, estamos vivenciando uma desordem afetiva e social, piorado, ainda, devido aos novos muros, ou bolhas, formados por uma multiplicidade de comportamentos raivosos e ácidos, potencializados na rede virtual.


A pura e simples diversidade não vai desaguar, como num passe de mágica, numa espécie de solidariedade espontânea; não existe esta força oculta operando nos bastidores. Tá faltando aí alguma junção, alguma mola. Mesmo a escola, como instituição fundamental para construção de laços sociais, na formação dos jovens, não resolve muita coisa. A escola não vai para casa, não vigia o comportamento das famílias, não está o tempo todo orientando os pais.


É preciso políticas públicas, discutidas pelos representantes políticos e membros da sociedade civil, que eduquem os pais e que induzam um padrão coerente de caráter objetivo. Neste sentido, a homeschooling é uma aberração, e só piora a situação.


Ainda vamos acreditar que a radicalização das formas de vida, o ultraliberalismo social, solipsista e sem controle, de indivíduos e famílias suspostamente autogestores e independentes, continue sendo o imperativo categórico das relações sociais contemporâneas? A democracia liberal tem custos muito altos para a vida coletiva, a questão é saber se há interesse em diminui-los.


Até a próxima!


51 visualizações0 comentário

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page