
Final de setembro geralmente o sol começa a raiar lindamente sobre terras soteropolitanas, apesar das loucuras atuais do clima. Nesse período ainda há um vento gostoso e refrescante e ainda não sofremos com as escaldantes temperaturas que se concentram entre dezembro e fevereiro. E é em meio a este nascente verão que iniciam os “ensaios” dos artistas baianos ou não; as praias começam a ficar cheias; inicia-se uma programação de domingo a domingo em uma cidade que ferve.
Este “ferver” soteropolitano é observado através de um frisson que a mídia, o governo, a prefeitura, as agências de publicidade, e claro, nós “pobres mortais” produzimos através dos nossos comportamentos, consumo e falas. Anda-se com menos roupa, vai-se à praia todo final de semana, as celebridades desfilam em praias como o Porto da Barra, artistas diversos veem passar “um período na Bahia” (na maioria das vezes Salvador é conhecida como a Bahia), há shows de graça, sendo da virada ou não, há muitos cantores e bandas em cada canto da cidade. E, claro, há os pagos que custam em sua maioria acima de R$100,00 e lotam.
A sensação que se tem é que se saiu de lugar cansativo, chato, rotineiro e todos os soteropolitanos, digo, to-dos entram em uma catarse. Fala-se que “não se tem dinheiro diante de tanta coisa para fazer neste período”. É importante lembrar que há custos de deslocamento com transporte público ou não, com a “breja”, o “churrasquinho”, o “acarajé” e por aí se segue o dinheiro que no mesmo período é para IPTU, IPVA, material escolar, presentes de Natal, matrícula, contas do dia a dia, etc, etc.
Essa Salvador idílica, que arde em sol e cor. Que faz os turistas dizerem que “há algo mágico” nessa cidade. Aliás, eles dizem, “na Bahia”. Essa Salvador que engana bem, disfarça-se nesse período de cidade exemplo, turística, ritmada. Apesar da violência aparecer nos noticiários, diminui-se muito os conflitos divulgados. Vide o Pelourinho altamente policiado. Salvador é preparada para quem vem de fora, e isso está certíssimo. Porém, parece que ao soteropolitano não é permitida essa sensação de, por exemplo, sentir-se seguro em outras épocas.
O soteropolitano é um personagem, muitas vezes caricato dessa “magia” vendida. Sorri, auxilia, é acessível, convida para comer o feijão em sua casa e ensina todas as coreografias. É um ator protagonista de uma grande propaganda, mas que não recebe seu cachê. Basta observamos o dia a dia: transportes públicos lotados, nem todos com ar condicionado; os shows caríssimos e quem não tem dinheiro para o uber precisa se virar para chegar em casa; os restaurantes encarecem nas áreas turísticas. E o mais delicado há uma mão-de-obra que é invisível para os soteropolitanos e turistas.
A moça que vende a água/cerveja/refri no show da virada, na saída da Arena Fonte Nova, do Parque de Exposições, e tantos outros lugares. Os seguranças que precisam suportar da falta de educação aos bêbados inconvenientes. E o pessoal que limpa banheiros, que arma a estrutura dos shows, que tem seu tabuleiro com chicletes e cigarros? Esse povo que ganha míseras diárias, ficam expostos a toda sorte de clima e comportamentos, são os figurantes dessa idílica cidade.
E tudo isso desabrocha de vez no carnaval, onde cordeiros, ambulantes – que se instalam por dias nos seus pontos para não perder o lugar para outro – motoristas de ônibus, cobradores, entre tantos outros são submetidos a condições extremamente inóspitas. É claro que muitas dessas pessoas aproveitam a oportunidade para ver seu bloco/artista preferido. Mas ainda assim são invisíveis.
Este não é um manifesto contra as maravilhas da nossa cidade, mas um chamado a reflexão pois nem todos os soteropolitanos vivem essa fantasia (que não é eterna, como diz a música Baianidade Nagô). Há muita gente trabalhando para fazer esse frisson vibrar. E tantos outros que não curtem sol, carnaval, axé, acarajé, etc. Salvador não é só essa fantasia. É também!
Talvez um dos primeiros pontos fosse o governo e a prefeitura realizarem campanhas para tornar o soteropolitano turista da sua própria cidade. Fazer com este conheça a sua cidade fora desse período sol/praia/festa e que não fosse apenas um propagador de uma realidade que parece só existir durante alguns meses. Dessa maneira ficaria mais fácil cantar o trecho: Quando você chegar/Quando você chegar/Quando você chegar/Numa nova estação/Te espero no verão, pois teríamos orgulho da segurança e estrutura da cidade, vibraríamos pelo prazer de viver e desfrutar da cidade e não dizermos que “sofremos, mas somos felizes”. Aliás, a idealização dessa cidade é tão bizarra que artistas locais até hoje não receberam o cachê dos shows realizados no carnaval passado. As vezes o prefixo parece de desespero e não de verão.
_______________________
Ótimo texto.
Acho que nossos texto conversam. Trata-se desse conhecimento "de cadeira" que temos por sermos soteropolitanos o ano inteiro. O verão pode trazer alegria, música e descontração, mas continua carregando a desigualdade, a fome devoradora do capitalismo e a gente (in)visível que sustenta a festa com seu trabalho muito mal remunerado.
Muito bem,Xico! Texto necessário. Complementando,nossos serviços são horríveis,para baianos e turistas,devido a uma exploração comerciária que ninguém regula nem fiscaliza.