“SE EU MORRESSE, VOCÊ PERCEBERIA?” SOBRE O FIM DO CUIDADO COLETIVO
- Karla Fontoura
- há 5 dias
- 4 min de leitura

Quem acompanha meus textos, sabe que eu já falei sobre a mãe que não pode morrer, que trata da centralidade do cuidado na figura materna que a impede de parar quando o corpo está sofrendo por um doença ou pelo processo de cansaço (imagina, então, a possibilidade de morrer sossegada?...). Agora quero ir direto ao ponto final, o fim a qual todo ser nesse mundo terá como destino. Para tudo há um jeito, menos para a morte. Porém, quando eu morrer, será que alguém vai perceber? Especificamente, será que alguém lembrará de mim ou serão necessárias horas ou dias para perceberam que jaz um corpo gelado na sala da minha casa?
Perdão pelo tom mórbido. Meu propósito é convocar sua percepção para algo amplo e inevitável, mas que chega para cada ser humano de forma única e, por vezes, surpreendente. De fato, foi a morte de alguém que me abriu a mente para discutir esse tema. Um famoso ator americano, Gene Hackman, foi encontrado morto em sua enorme mansão. Não só ele, mas sua esposa e seu cachorro também. Após investigações na polícia, descobriu-se que a sua esposa, que era sua principal cuidadora, dado que ele sofria de um quadro severo de Alzheimer, estava muito doente e faleceu no banheiro, onde estava o cachorro. Desorientado, o ator não conseguiu se alimentar, se hidratar ou tomar seus medicamentos, levando ele a uma situação de colapso e, à morte.
Me assustou prontamente ler essa notícia pela imensa solidão desse casal de idosos que morreu e foi descoberto mais de uma semana depois. Uma semana?! Pior ainda, eles foram encontrados por um funcionário que cuidava do jardim. Nenhum amigo ou parente procurou eles nesses dias. Ninguém ligou ou ficou intrigado pelo sumiço deles. O ator tinha 3 filhos, de um outro casamento e, como eles não foram incluídos no testamento do pai, acredita-se que havia problemas de relacionamento entre eles. A esposa dele não tinha filhos, mas será que não tinha uma tia, prima, irmã? ALGUÉM? Esse foi o eco na minha mente após me questionar essa morte tão solitária. Se eu morrer, será que alguém vai perceber?
Como mãe solo, que possui uma única rede de apoio, algum contato com minha pequena família nuclear e muitos amigos, me dei conta que, por vezes, passo dias sem que ninguém me mande uma mensagem para saber como estou. Claro que meu filho, sendo um menino de dez anos, tem a possibilidade de usar seu tablet para chamar alguém caso eu passe mal, porém, quando ele passa as férias na casa da avó, eu fico o tempo todo sozinha. Se nos dois meses que ele não está comigo, eu ficasse doente e apagasse no meio da sala, quanto tempo levaria para alguém perceber que eu poderia estar com problemas?
Para uma mãe solo, de Minas Gerais, responsável por uma criança de 6 anos com autismo, somente após 12 dias de sua morte por um infarto fulminante, alguém se deu ao trabalho de ir na sua casa saber se ela estava bem. O menino, que ficou todo esse tempo sozinho e sem assistência, sobreviveu. Em São José da Tapera, Alagoas, uma criança autista de seis anos passou três dias ao lado do corpo da mãe morta. Os vizinhos chamaram a polícia por conta do forte odor que emanava da casa. Um forte odor??? Será que os vizinhos sabiam que a mãe cuidava de uma criança autista e não cogitaram, em nenhum momento, que essa mãe poderia estar em apuros após esses dias presa em casa?
Penso no lugar da mãe solo por ser minha principal realidade, mas pode ser qualquer situação de isolamento a qual não damos atenção. Uma pessoa idosa, ou duas pessoas idosas, como era o caso do ator americano. Alguém com questões de saúde mental que não sai de casa, ou com limitações físicas. Só consigo pensar que, como sociedade, estamos falhando ao deixar pessoas morrendo sem um mínimo de dignidade, como ter seu corpo lembrado antes que cheire mal…
Isso me faz pensar na análise da antropóloga Margaret Mead que considera que o achado de um fêmur quebrado e curado seria o primeiro sinal de civilização. Ela afirma que o fêmur curado era a prova de que alguém cuidou de uma pessoa ferida, protegendo-a e alimentando-a até que a lesão cicatrizasse, um fato único nos tempos pré-históricos, onde o ser humano era mais exposto aos perigos do seu entorno. Margaret explica que, no resto do reino animal, se você quebrar a perna, é simplesmente deixado e, provavelmente, morre.
Por isso, eu volto a pergunta do início do texto: se eu morrer, será que alguém vai perceber? Será que evoluímos como grupo social ao ponto de cuidar um do outro e depois esquecemos desse mandamento básico porque criamos sistemas e tecnologias que trazem comida para sua casa em dois cliques, ou por habitarmos em espaços com toda a necessidade de eletricidade e água? Talvez vamos precisar criar um relógio de saúde preso ao nosso pulso que, quando nosso coração parar de bater, ele emita um alerta aos nossos amigos e/ou familiares para nos avisar que jaz um corpo morto na casa. Ou quem sabe podemos voltar a escolher algumas pessoas mais frágeis do nosso entorno para monitorar e cuidar diariamente para sabermos se está bem.
Eu escolhi a segunda opção e agora falo com minha mãe todos os dias. Ela nunca foi de muitos papos e temos muitos problemas, como já relatei em um texto aqui, mas a ideia de imaginar ela em sofrimento sozinha, me fez deixar de lado todas as questões e puxar conversas aleatórias, diariamente. Quero pelo menos dar a ela a dignidade da atenção de uma filha no seu suspiro final. E você, o que pode fazer?
FONTES:
https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2024/04/12/mae-morre-crianca-trancada-em-casa-corpo-al.ghtml
Infelizmente o ser humano parece ocupado demais para se preocupar com o outro.
[...]Por estarmos sempre ocupados perdemos partes importantes de nossas vidas. Ao nos darmos conta o tempo passou, os cabelos embranqueceram, a pele enrugou. Algumas pessoas se foram e nem sequer nos damos conta. Por estarmos com tantas ocupações não notamos como essas coisas aconteceram.