SUPREMA CORTE NORTE-AMERICANA ACERTA AO PERMITIR QUE OS PAIS DECIDAM SOBRE O QUE SEUS FILHOS POSSAM LER. E PORQUE ISSO REPRESENTA UMA TRAGÉDIA CIVILIZACIONAL
- Miguel Pereira Filho
- 1 de jul.
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Atualizado: 1 de jul.

Na sexta-feira passada, 27 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos, por seis votos a três, decidiu que os pais de estudantes em escolas públicas devem ser notificados caso a instituição de ensino utilize material paradidático que envolva temas ligados à cultura LGBTQIA+. Como lembrou o juiz Samuel A. Alito Jr., “há muito que reconhecemos o direito dos pais de orientar a ‘educação religiosa’ dos seus filhos”.
Na leitura do conteúdo da decisão da maioria no caso Mahmoud v. Taylor, Alito Jr. é taxativo ao reconhecer o direito assegurado pela Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, a qual garante o livre exercício das crenças religiosas — algo que, de acordo com o grupo de pais autores da ação, seria inviabilizado pela utilização dessa bibliografia sem sua prévia anuência. Assim, caso qualquer obra que aborde esses temas venha a ser trabalhada em sala de aula, os pais têm o direito de serem notificados, podendo inclusive solicitar a abstenção de seus respectivos filhos do conteúdo.
Esse voto da Suprema Corte norte-americana — instituição análoga ao nosso STF, mas com muito mais pudor e com muitíssimo menos incontinência verbal — demarca uma posição que contraria uma política vigente, ao menos no estado de Maryland, desde 2022. Tal política previa a inclusão de obras literárias com personagens gays e transgênero, com o objetivo de abordar a diversidade em sala de aula.
Para aqueles que conhecem a obra O conto da aia, de Margaret Atwood, e a leem como uma espécie de Les Prophéties do século XXI, essa decisão talvez configure a insofismável confirmação de que os Estados Unidos caminham, a passos largos, para tornar-se uma teocracia. Sim, a situação política e social norte-americana preocupa; entretanto, é necessário observar a decisão constitucional mais de perto, a fim de afastarmos quimeras do voluntarismo.
Do ponto de vista institucional, a Suprema Corte acerta ao decidir pela notificação, sem, contudo, interferir na liberdade que as instituições de ensino possuem de não apenas definir o conteúdo didático, mas, enquanto instituições públicas, promoverem políticas educacionais que valorizem a inclusão de temáticas de gênero, por exemplo.
Não obstante, como lembrou a juíza Sonia Sotomayor, além dos problemas pedagógicos envolvidos, há um risco concreto de que os estudantes cujos pais não autorizem o contato com essa literatura acabem "isolados da exposição a ideias e conceitos que possam entrar em conflito com as crenças religiosas de seus pais". Com efeito, como o neoconstitucionalismo barrosiano é uma erva daninha que não prospera em solo ianque, mantém-se ali o princípio de que não é tarefa do juiz fazer o bem, mas, sim, aplicar incondicionalmente a lei (Antonin G. Scalia, saudades...).
No entanto, é preciso recordar que a decisão de hoje, longe de apenas refletir a cruzada que parte da sociedade americana resolveu travar contra os fundamentos da República criada no século XVIII pelos Founding Fathers — esses, como verdadeiros avatares do desejo de uma sociedade fundada na razão —, também exprime impasses que remontam ao próprio alicerce dessa mesma república, como o eterno embate entre liberdade e equidade.
A longo prazo, essa tensão é crucial para a sobrevivência da própria República. Foi Alexis de Tocqueville, em sua monumental obra A democracia na América, quem brilhantemente percebeu que o princípio da igualdade — pedra fundamental da sociedade americana — tornar-se-ia, paradoxalmente, um dos principais desafios ao modo de vida americano.
Não à toa, o caso dos Nove de Little Rock é emblemático nesse impasse que, à época, parecia se encontrar em uma verdadeira disjuntiva. Uma decisão da mesma Suprema Corte, obrigando as escolas a eliminarem restrições raciais, transformou a capital do Arkansas em centro de uma conflagração social, em que forças federais tiveram de intervir para garantir que nove alunos negros pudessem ingressar em uma escola que, por sua vez, havia sido esvaziada, já que a maioria dos pais se recusou a aceitar a medida judicial.
E aqui reside o “cerne da coisa”: da mesma forma que os pais das crianças brancas não eram obrigados a matricular seus filhos em salas com colegas negros, tampouco os pais que se sentem lesados em sua liberdade religiosa podem ser compelidos a permitir que seus filhos leiam conteúdos que contrariam seu credo. Em circunstâncias semelhantes, nenhuma medida política pode, sob qualquer justificativa, atropelar o direito dos pais de educarem seus filhos conforme suas convicções — desde que tal educação não infrinja os princípios constitucionais, o que não se verifica neste caso.
Não se trata, portanto, de concordar com a motivação dos pais ou simplesmente rotulá-los como reacionários. Pessoalmente, se tivesse um filho, entendo que ele deveria ter contato com toda e qualquer literatura que, adequada à idade, promovesse uma verdadeira educação esclarecedora — inclusive para que pudesse formar opinião crítica e fundamentada sobre aquilo que eventualmente não aprecia. Mas reconheço que esse valor não é universal e, com toda razão, há pais que consideram certos temas inadequados à formação de seus filhos, especialmente por tocarem em aspectos fundamentais de sua fé religiosa — algo tornado sacrossanto (não pude evitar o trocadilho) desde as primeiras revoluções liberais que sacudiram o hemisfério norte no século XVIII.
A escola tem, e sempre terá, um papel fundamental na formação das gerações que se sucedem. É a principal instituição pela qual se consuma a questão filosófica da natalidade: é por meio dela que nossos sucedâneos irão se constituir não apenas como profissionais e cidadãos, mas, sobretudo, como pessoas. Não se trata, pois, de negar ou minimizar a importância de se tratar de questões de gênero no âmbito educacional, mas de garantir que o princípio iluminista da liberdade seja plenamente respeitado — permitindo que todos possam optar pelo que consideram melhor para si e para seus filhos.
Quando observo o tratamento destinado a gays, lésbicas e travestis na minha infância e adolescência, saber que hoje existe uma literatura — o que implica reconhecer a existência de um mercado consumidor que as editoras desejam alcançar — voltada para esses temas, é algo que revigora a ideia de que o tensionamento dessas questões revela, em seu avesso, a persistência de uma transformação social que, longe de ser linear, avança em ziguezagues, como uma nascente que desvia das pedras no caminho para seguir seu curso.
E, como não poderia deixar de ser, encerro com uma reflexão de Hannah Arendt: se a decisão da Suprema Corte significar um retrocesso na discussão da temática LGBTQIA+, então é o mesmo que dizer que todos nós estamos, implicitamente, retirando nossa responsabilidade pelo mundo no qual colocamos nossos filhos e recusando o dever de guiá-los por esse mundo. Se o futuro pertence a eles, não nos esqueçamos de que cabe a nós garantir que esse futuro exista — e garantir, filosoficamente, que haja tempo e espaço para que eles possam, enfim, atuar.
REFERÊNCIAS USADAS
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: CIA das Letras, 2004.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
THE GUARDIAN. US supreme court rules parents must be told if schools use LGBTQ+ books. The Guardian, 27 jun. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2025/jun/27/us-supreme-court-lgbtq-books-school-notification. Acesso em: 1 jul. 2025.
HISTORY. Little Rock Nine. History Channel, [s.d.]. Disponível em: https://www.history.com/topics/black-history/central-high-school-integration. Acesso em: 1 jul. 2025.
Não consigo ver ligação entre literatura com temática LGBTQIA+ e liberdade religiosa. O que vejo são pais controlando o ensino pedagógico destinado à escola. Isso é um direcionamento rumo à vigilância institucional da comunidade frente à constituição de princípios democráticos.