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TRUMP E A PÓS-VERDADE




A história de Peter Navarro (conselheiro econômico de Donald Trump) é, por si só, um retrato peculiar da era trumpista, marcada por decisões políticas que frequentemente ignoraram os métodos tradicionais e sérios de análise e seleção técnica. Segundo diversos relatos, como os publicados pelo New York Times e pela CNN, foi o genro de Trump, Jared Kushner, quem descobriu Navarro não por meio de indicações acadêmicas ou experiência de governo, mas sim ao buscar na Amazon, livros que criticassem duramente a China. A escolha recaiu sobre Death by China (A morte pela China), um livro cuja capa ostensiva e título alarmista chamou a atenção de Kushner, pois não foi avaliado o conteúdo, mas tão somente a capa. O conteúdo, embora polêmico e controverso, correspondia ao tom de confronto e protecionismo que Trump buscava para sustentar sua retórica econômica nacionalista.


Peter Navarro, até então um economista relativamente obscuro da Universidade da Califórnia, tornou-se, da noite para o dia, um dos principais conselheiros econômicos da Casa Branca. O que intrigou a imprensa, e mais tarde virou motivo de escândalo intelectual, pois foi a descoberta de que parte dos argumentos usados por Navarro para embasar suas teses estavam atribuídos a um certo "Ron Vara", apresentado como uma autoridade em temas de comércio internacional. Contudo, “Ron Vara” não existia. Era um anagrama mal disfarçado de Navarro, uma espécie de pseudônimo fictício que ele usava como artifício retórico em seus próprios textos. A revelação de que Navarro citava a si mesmo por meio de uma personagem inventada causou enorme perplexidade na comunidade acadêmica e midiática. Em vez de usar fontes sólidas e verificáveis, Navarro apoiava seus argumentos em uma persona falsa, o que minava drasticamente sua credibilidade acadêmica e ética.


Mesmo assim, foi sob essa lógica enviesada, mais próxima da propaganda do que da ciência econômica, que Trump estruturou parte de suas políticas comerciais, sobretudo a guerra tarifária contra a China. O pensamento de Navarro servia como uma espécie de "posto Ipiranga" para justificar qualquer ação protecionista ou isolacionista que Trump quisesse tomar, mesmo que isso implicasse o uso de premissas frágeis ou distorcidas. O caso Peter Navarro expõe um fenômeno mais amplo da política contemporânea: o uso performático do saber técnico, não como meio de elucidar a realidade, mas como ferramenta para validar ideologias pré-estabelecidas. O conhecimento deixa de ser um instrumento de mediação racional e passa a ser manipulado como espetáculo.


A ascensão de Peter Navarro à posição de conselheiro econômico de Donald Trump, baseada mais em uma busca por títulos chamativos na Amazon do que em critérios técnicos, evidencia um deslocamento fundamental na relação entre saber e poder. Esse deslocamento pode ser compreendido à luz das análises de Michel Foucault, especialmente nas suas investigações sobre a produção de regimes de verdade. Foucault argumenta que o saber nunca está desvinculado das estruturas de poder. Em sua obra Vontade de saber, ele afirma: “Não há saber que não esteja investido de poder, e não há poder que não se exerça sem a constituição de um campo de saber” (Foucault, 1999, p. 28).


No caso de Navarro, o que temos é a emergência de um saber forjado, no qual a figura do "especialista" não é construída por rigor metodológico, acúmulo crítico ou inserção no campo acadêmico reconhecido, mas sim por sua capacidade de fornecer o discurso que valida uma política pré-estabelecida. Isso nos remete à noção foucaultiana de regime de verdade, que ele define como: “Os ‘regimes de verdade’ são os tipos de discurso que uma sociedade acolhe e faz funcionar como verdade; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir o verdadeiro e o falso; os meios pelos quais cada um é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados para a obtenção da verdade” (Foucault, 2004, p. 56). Assim, ao utilizar um pseudônimo fictício (Ron Vara) como fonte para validar suas próprias ideias, Navarro inverte o jogo da autoridade. Ele cria um simulacro de legitimidade que, paradoxalmente, ganha força exatamente por atender à expectativa de um governo que despreza os critérios tradicionais e sérios de validação do saber. Trata-se desta forma de uma produção cínica da verdade, onde a aparência de cientificidade é suficiente para sustentar políticas econômicas de grande impacto.


A guerra comercial com a China, portanto, não pode ser entendida apenas como uma estratégia econômica, mas como um ato performativo, sustentado por uma construção discursiva que busca não convencer pela razão, mas pelo medo, pela ameaça e pela repetição de slogans nacionalistas. A escolha de Navarro é funcional nesse processo: sua retórica anti-China, baseada em dados questionáveis e argumentos falaciosos, serve ao propósito de consolidar uma narrativa populista. Ainda mais, podemos ver aqui a substituição do saber científico pelo saber militante, aquilo que legitima a ação política não pela coerência, mas pela utilidade ideológica.


A figura de Peter Navarro, promovido a conselheiro econômico de Donald Trump a partir da capa de um livro, simboliza uma mudança paradigmática na relação entre verdade, poder e discurso, pois sua autoridade foi construída não pelo acúmulo legítimo de saber, mas por sua capacidade de narrar aquilo que se queria ouvir. Essa é precisamente a essência do que se convencionou chamar de pós-verdade. Este termo ganhou notoriedade a partir de 2016, ano da primeira eleição de Trump e do Brexit, sendo posteriormente eleito como a palavra do ano pelo Oxford Dictionaries. Segundo a definição da Oxford: "Pós-verdade refere-se a circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal." (Oxford Dictionaries, 2016)


A partir dessa definição, podemos entender que a pós-verdade não implica o fim da verdade, mas sua reconfiguração como um elemento subordinado à eficácia retórica e à adesão emocional. O caso de Ron Vara (o falso especialista inventado por Navarro) é exemplar: a falsidade do personagem não impediu que suas "afirmações" fossem aceitas por Trump e seus apoiadores. Ao contrário, a veracidade tornou-se irrelevante, pois o discurso já cumpria sua função política: justificar a guerra comercial com a China, alimentar o ressentimento nacionalista e sustentar uma narrativa anti-globalista.


Na era da pós-verdade, essa denominada “verdade" é cada vez mais pautada por mecanismos de visibilidade digital, algoritmos e redes sociais, onde o critério de validade de um enunciado já não é sua correspondência com os fatos, mas sua capacidade de gerar engajamento e mobilizar afetos. Como aponta o filósofo esloveno Slavoj Žižek (2017): "A verdade, hoje, importa menos do que a verossimilhança que se adapta ao desejo coletivo. [...] O que é real não é o fato, mas o gozo que ele produz."


Essa lógica é explorada de maneira sistemática por figuras como Navarro e o próprio Trump, que entendem a política como uma disputa não pelo que é, mas pelo que parece ser. A pós-verdade, assim, não é apenas uma crise epistemológica: é uma reconfiguração das relações de poder, onde o saber deixa de ser um instrumento de emancipação e passa a ser uma arma retórica a serviço de projetos autoritários e nacionalistas.


A escolha de Peter Navarro não foi um desvio acidental do racionalismo técnico, mas um sintoma de uma nova racionalidade política, marcada pela indiferença à verdade factual e pela centralidade do afeto e do ressentimento. O uso de uma fonte fictícia (Ron Vara) ilustra a substituição da autoridade epistemológica pela autoridade emocional, típica da era da pós-verdade.


Nas palavras de Hannah Arendt (1972, p. 12): “O problema com as mentiras massivas não é apenas que são mentiras, mas que fazem com que a realidade inteira pareça duvidosa.” A instrumentalização da mentira, da aparência de verdade e da manipulação simbólica do saber mostram que o caso Navarro não é uma exceção, mas um sinal de que a verdade deixou de ser um compromisso ético-político e se tornou um campo de batalha discursivo.


FONTE:


ARENDT, Hannah. A mentira na política: ensaio sobre os Pentagon Papers. São Paulo: Companhia das Letras, 1972.


FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2002.FOUCAULT, Michel. Vontade de saber. História da Sexualidade I. Rio de Janeiro: Graal, 1999.OXFORD DICTIONARIES. Word of the Year 2016. Disponível em: https://languages.oup.com


ŽIŽEK, Slavoj. A coragem do desespero. São Paulo: Autêntica, 2017.


FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10. ed. São Paulo: Loyola, 1996.FOUCAULT, Michel. Vontade de saber. História da Sexualidade I. Rio de Janeiro: Graal, 1999.FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

2 comentarios

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Invitado
30 abr
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Importantíssimo esse destaque para figuras desta vertente política, que ao final, de tão distantes da realidade, precisam literalmente inventar uma base dita sólida para exposição dos seus ideais... Imagine se no Brasil, com todo seu histórico de assistência a saúde, por exemplo, se conseguiria alguém de autoridade para ser anti vacina... Não mesmo.

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Flavio
30 abr
Obtuvo 5 de 5 estrellas.

Flavio

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