Semana passada, em Pindorama, as principais redes sociais suspenderam a conta do presidente Jair Bolsonaro. Há muito sabemos que os canais oficiais do mandatário brasileiro é um esgoto a céu aberto, mas desta vez ele fez questão de potencializar o mal cheiro: associou uma falsa pesquisa que junta vacina da corona vírus com a Aids. Não preciso dizer que é um desserviço à sociedade, seja porque coloca a ciência na lata do lixo, seja porque influencia no comportamento de milhares de pessoas que acreditam que o presidente é algum enviado divino e mensageiro da verdade, tal como o padre da série famosa da Netflix, Missa da Meia Noite.
Mas vamos na seguinte questão: como combater a fake news e as teorias conspiratórias?
De maneira geral, todos falamos sempre de educação: uma conduta necessária para elevar as pessoas ao pensamento crítico. Acreditamos que isso é fundamental no aperfeiçoamento social. Mas, na realidade, vemos pessoas formadas, com nível superior, supervalorizando teorias conspiratórias e propagando fake news, conscientes ou não.
Verdade seja dita: nunca houve um projeto radical (de ir na raiz da coisa) capaz de alfabetizar a sociedade no que tange ao espírito científico; no senso comum, mesmo nas redes dos mais abastados, impera a filosofia espontânea e a teologia cotidiana que fala sobre tudo e não diz sobre nada, num mar sem fundo, de relativismo e ressentimento, subjetividades, portanto.
Sempre houve teorias conspiratórias e notícias falsas ou distorcidas. O que muda na sociedade contemporânea é a globalização e a web: letalidade e a velocidade das aberrações são incomparáveis com qualquer época da humanidade. Mas, e daí, a gente vai fazer o quê?
Penso que é preciso legislação rígida, que passa, sim, meus caros ultraliberais, pelos governos. Sim, os governos precisam regular a delinquência moral e intelectual que escorre sem contenção diariamente. É preciso criar barragens a fim de evitar alagamentos. Quais delinquências? Ataque a ciência, a democracia, a república, os direitos humanos.
Muitas empresas têm lucrado com cliques, visualizações, compartilhamentos, curtidas etc., o capitalismo se alimenta bastante disso. Nós viramos o produto: nossos dados são vendidos na internet; já sabem do que a gente gosta. Inclusive, neste ponto, precisamos realmente discutir mais a fundo a proteção dos dados dos cidadãos. Papo pra outro momento.
O Youtube não pode permitir que vídeos de terraplanismo ou teorias estapafúrdias sobre vacina concorram com vídeos sobre ciência. O Youtube não pode permitir vídeos que pregam a violência contra o Estado de Direito ou contra as minorias. O Twitter não pode permitir opiniões de grupos extremistas ou radicais fanáticos que fazem apologia à violência. Não dá! Antes do lucro a qualquer custo, as empresas precisam entrar num circuito ético. Claramente, vivemos numa grave degradação de valores, e este ponto não pode ser ignorado pelos big techs.
Não faz mal buscar um norte civilizatório para barrar e bloquear certos temas e assuntos. Qualquer opinião não pode mais ser aceita e propagada a torto e a direita, como se fosse uma ação sem consequência, um estado de natureza hobbesiano onde o juiz é a própria consciência. Fatos não podem ser narrativas distorcidas do real em nome de alguma ideologia; critérios não podem ser subjetivados. Sim, você pode até acreditar, na sua privacidade, que a terra é plana, ou que jaz um projeto global de ataque ao cristianismo, ou, ainda, a existência de um projeto comunista ou judeu de controle global da mídia, mas ao escorrer a sua estupidez para milhares de pessoas, você está afetando diretamente a vida delas e, por tabela, da própria sociedade.
Se aceitamos qualquer opinião propagada, como se fosse liberdade de expressão no espaço público, e a internet é um espaço público que atinge pessoas de todo o globo, estamos embarcando para a barbárie moral, intelectual, política, técnica. Empresas precisam ser responsabilizadas por permitir esse espaço.
O termo barbárie é bastante interessante se associarmos ao adjetivo ressentido. Para Jean- François Mattéi, em A Barbárie Interior, a rebelião da subjetividade, do eixo para si mesma, contra qualquer forma de transcendência, ou objetividade, é a decadência da sociedade moderna. Há quatro traços conjugados dos ressentidos: desconhecimento da beleza de uma obra de arte, por isso a ignorância crônica; a recusa da excelência, por isso a pretensão tola; a incapacidade de realizar um gesto criador, por isso a impotência; e a vontade confusa de destruição, por isso a regressão. Em outros termos,
O sujeito moderno encontrará em si a forma vazia de uma razão solitária voltada para ela mesma. A Era do individuo começa e, com ela, a Era do vazio que faz insensivelmente desaparecer – fazendo da necessidade, humanismo – a própria figura do homem. [1] (p. 28)
A civilização não pode comporta-se como Alice no País das Maravilhas, que está perdida e quer ir pra qualquer lugar. Não! Temos que saber o que queremos, e para onde avançaremos. E isso passa por um pacto civilizatório entre governos, empresas, ciência, mídia, blocos globais, partidos e a sociedade civil organizada.
Contudo, não podemos perder de vista a extrema desigualdade social, os impasses do pluralismo moderno, o parasitismo das elites políticas, que viraram as costas aos interesses materiais da população. Tudo isto acaba também canalizando o fomento de fake news, propagação de notícias distorcidas e teorias conspiratórias. Todos estes elementos devem ser considerados. Se continuarmos colocando tudo pra debaixo do tapete, vamos retroceder ainda mais.
A ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo e as velhas ontologias retrógadas que orientam a vida de milhões de pessoas, é apenas um efeito daquilo que não conseguimos resolver como civilização. Enquanto alguns grupos se organizam internacionalmente para destruir tudo que aí está, com táticas claras de distorção da realidade e banalização da ignorância, nós devemos agir, não para derrubar todo o edifício social, ou se utilizar de mentiras ou da política como guerra, mas apontando os reais problemas crônicos com vistas ao aperfeiçoamento da convivência. Em suma, é urgente e necessário um novo contrato social contra os rebelados ou excluídos do antigo contrato.
[1] MATTEI, Jean- François. A Barbárie Interior. Ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo: Editora UNESP, p. 28, 2002.
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