Quem aqui assistiu a última campanha da Volkswagen, aquela com o casal gay reunido em torno do novo POLO, festejando o amor, o respeito, o carinho, além dos novos acessórios incríveis em um carro que pode chegar aos seus 140.000 reais? Não sei se você conhece o universo das campanhas publicitárias, mas a Volkswagen tem acolhido bastante essas pautas nos últimos tempos, desde 2021 com postagens mais acolhedoras de demandas progressistas, o que em certa medida é muito bem-vindo. Segundo a gigante alemã, em uma de suas declarações:
Acreditamos que cada pessoa, de diferentes raças, etnias, gênero, orientação sexual e idade/geração, tem experiências únicas, que somadas contribuem para fortalecer não somente a cultura da empresa, mas também o ambiente em que vivemos. Temos como responsabilidade continuar aprendendo de que forma podemos contribuir para a luta contra qualquer forma de preconceito, pois consideramos fundamental conciliar as diferenças para a construção de uma sociedade justa para todos.
Embora esse comercial tenha balançado a internet de um jeito curioso, ao cutucar a moralidade de muitos reaças espalhados por aí, não esqueçam que esse exemplo é apenas a ponta bem distante de um iceberg enorme, o início de um novo fenômeno no horizonte de cada mídia disponível. Nos últimos anos, filmes, séries, produtos, e até congressos e eventos universitários e políticos, compreendem a luta identitária como algo que agrega valor a uma determinada mercadoria, seja um creme de cabelo ou até uma palestra acadêmica ou um discurso partidário qualquer. É mais do que óbvio o quanto hoje a diversidade não é uma simples bandeira, como foi na década de 60 com a chegada da nova esquerda e suas pautas de reconhecimento, mas principalmente um troféu, uma medalha, uma insígnia de diferenciação disputada por todos, até mesmo pelos seus mais odiosos inimigos. Em termos bourdiesianos, a diversidade trouxe no século XXI uma nova economia simbólica, talvez até mesmo um novo tipo de capital, um “capital identitário”.
O epistemicídio, termo criado pelo filósofo português Boaventura de Souza Santos, em sua obra clássica “Pela Mão de Alice” na década de 90, com várias das suas implicações teóricas desenvolvidas aqui no Brasil por Sueli Carneiro, descreve um processo de apagamento e invisibilização de grupos, corpos e experiências. Se você é de humanas, ou tem algum grau de proximidade com essa área, provavelmente não é a primeira vez que encontra pelo caminho esse termo, assim como não vai ser a última. O gesto epistemicida retira do outro a possibilidade de uma existência digna e reconhecível. É um gesto agressivo que nega a esse mesmo outro a chance de compartilhar suas próprias experiências, de nomear suas crises, de definir suas expectativas, lançando tudo em um terreno privado de esquecimento coletivo, como acontece quando olhamos com calma as dimensões de classe, gênero ou raça.
Embora esse raciocínio fosse coerente com o clima histórico e político na década de 90, com toda a óbvia bagagem pós-estrutural que trazia consigo, algo parece ter mudado nos últimos tempos, alguma coisa diferente circula pelo ar, o que demanda novas ferramentas conceituais, inclusive ultrapassando o pós-estruturalismo de autores como Boaventura, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro. Dentro de uma abordagem pós-estrutural, seguindo os passos do mestre Foucault e sua genealogia subversiva, o objetivo é simples, nada mais do que o descentramento da realidade e suas estruturas logocêntricas de pretensão universal, pluralizando, como resultado, as perspectivas, discursos e ideias. De acordo com Boaventura, “o conhecimento científico, que sempre foi concedida prioridade absoluta na tradição crítica ocidental, é considerado pelos novos movimentos populares como apenas um tipo de conhecimento entre muitos outros” (SANTOS, 2014, p. 70, tradução minha). Nas palavras da filósofa brasileira Djamila Ribeiro,
As experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente (RIBEIRO, 2017, p. 35).
Existe aqui o desejo de escapar do silêncio sufocante do cotidiano, apostando as fichas no descentramento e numa crescente ampliação de visões, experiências e horizontes. A publicidade desses corpos, e sua necessária inscrição no simbólico como um gesto político, é apresentado como algo claramente positivo, ao contrário do seu esquecimento ou simplificação. Da mesma forma que em crises neuróticas, o objetivo é trazer o corpo até a linguagem, representando seus contornos mais incertos e esquecidos. Mas esse processo quase psicanalítico de intervenção é algo sempre interessante, sem qualquer tipo de risco, sem qualquer tipo de custo? Talvez, no fim das contas, depois de um percurso analítico mais cuidadoso, as coisas não sejam tão simples assim. Talvez não exista apenas no mundo dois grupos opostos e incompatíveis: a) os progressistas defensores de pautas identitárias e b) os conservadores críticos dessas mesmas pautas. Seria possível também enxergar no primeiro grupo certas tendências problemáticas, uma espécie de subsolo suspeito operando nas sombras.
Seguindo um pouco uma das hipóteses levantadas nesse ensaio, talvez não vivemos mais na era do epistemicídio e seus efeitos de apagamento, como foi a regra nas décadas de 80 e 90, mas em um novo campo de relações, aqui chamado de espetacularicídio. Ao contrário do primeiro, o segundo publiciza, expõe e divulga valores e ideias de uma forma impressionante, embora mercantilizando o debate, seja no próprio campo econômico, com sua racionalidade instrumental de fundo, ou até mesmo em um tipo de mercantilização simbólica, como acontece em universidades e na própria política. Como é descrito muito bem por Foucault em muitos de seus textos mais genealógicos, o fato de uma certa experiência sair da privacidade e ganhar o espaço público, sendo agora difundido em vários tons e espaços, além de debatidos e teorizados, não garante nenhuma vantagem imediata, ao menos não à primeira vista. O simples crescimento das representações, assim como a presença constante em palestras, livros, propagandas, filmes, séries, ou seja, a mera entrada no simbólico com todas suas variações e possibilidades, pode significar também um sintoma problemático, uma crise à espreita que pede por uma investigação cuidadosa.
Hoje o ponto central não é mais a falta de visibilidade de grupos, corpos e demandas identitárias, mas justamente o completo oposto. O problema, hoje, ao contrário do que imaginava Boaventura na década de 90, é o excesso de visibilidade e sua consequente banalização. Por esse motivo, a meta das lutas identitárias não deve ser mais a simples quantidade, e a abrangência das representações, mas a qualidade de como são administradas. Ou seja, como os grupos minoritários estão sendo representados? Por que? Por quem? Não adianta mais o compromisso quantitativo da década de 60 de difundir os espaços de representação, mas também fiscalizar como essas mesmas representações estão sendo feitas. Desde que a diversidade seja acolhida como um princípio geral por todos, vale realmente qualquer coisa, qualquer cenário? Os fins justificam mesmo os meios?
Embora provocativo, esse ensaio não tem como compromisso estabelecer um parâmetro sólido e óbvio do que é uma “verdadeira” representação, muito menos definir como os grupos identitários devem operar. O propósito é reconhecer um novo espaço de questionamentos que se forma nos últimos anos: pela primeira vez perguntas como “qual o limite da representação?”, “até onde ela deve ir?”, começam a fazer parte do nosso cotidiano. Apesar de não termos ainda respostas para essas perguntas, o simples fato delas existirem já configura um diferencial. Essa dúvida que brota no coração do mundo já é reveladora de um novo cenário no capitalismo contemporâneo, na medida em que transforma a diversidade em um novo tipo de capital, seja econômico, acadêmico, religioso ou político. Todos percebem, ainda que não falem em voz alta, o quanto a diversidade é um emblema que agrega valor a tudo aquilo que toca, produzindo, como consequência, uma nova economia simbólica, um novo tipo de capital: o CAPITAL IDENTITÁRIO.
REFERÊNCIAS:
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologies of South: Justice against epistemice. New York: Routledge, 2014.
Referência da imagem:
https://www.uol.com.br/carros/noticias/redacao/2022/05/14/por-que-casal-gay-do-vw-polo-e-so-inicio-de-comerciais-de-carros-para-lgbts.htm
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