VIOLÊNCIA POLÍTICA DE GÊNERO: o caso Marina Silva e a resistência das mulheres na política
- Nieissa Pereira
- 1 de jun.
- 6 min de leitura

Na última semana, os canais de notícias e as redes sociais repercutiram um episódio emblemático de violência política de gênero, protagonizado contra a Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, durante uma audiência na Comissão de Infraestrutura do Senado. A Ministra foi chamada à referida Comissão para falar sobre a criação de áreas de conservação na região Norte do país, mas o que aconteceu, na verdade, é que a Ministra virou alvo de declarações machistas e ofensivas por parte de alguns senadores.
Falas do senador Marcos Rogério (PL-RO) como “Me respeite, ministra, se ponha no teu lugar", e do senador Plínio Valério (PSDB-AM) que ao cumprimentar a Ministra ressaltou que desejava "separar a mulher da ministra", porque a mulher "merecia respeito" e a ministra, não; os vários momentos em que a Ministra teve seu microfone cortado impedindo-a de se defender das ofensas e de realizar o debate que lhe foi proposto no convite feito a ela para comparecer a Comissão do Senado causaram revolta tanto para quem acompanhou os “trabalhos” da Comissão ao vivo pela TV Senado, quanto em quem viu posteriormente nos canais de notícias e na internet.
Vale ressaltar de que esse não é um episódio isolado ou novo em relação à Marina Silva. Durante uma sessão da CPI das ONGs, o senador Valério afirmou, em tom considerado jocoso: “Imagine o que é tolerar a Marina seis horas e dez minutos sem enforcá-la”. A frase provocou uma onda de indignação e repúdio em diversos setores da sociedade, evidenciando, mais uma vez, como a violência política de gênero segue sendo um dos principais entraves à participação plena e segura das mulheres na política brasileira.
O senador, em declarações posteriores, recusou-se a pedir desculpas e negou que sua fala tenha tido caráter machista, afirmando ser uma “força de expressão” e acusando os críticos de exagero. Sua postura demonstra como as manifestações de violência simbólica e verbal contra mulheres são frequentemente naturalizadas e justificadas sob a lógica da “brincadeira” ou do “excesso de sensibilidade”.
A ministra Marina Silva reagiu, apontando o caráter misógino da declaração e destacando que dificilmente tal fala seria dirigida a um homem em situação semelhante. Para Marina, o episódio integra uma cadeia de violências simbólicas que têm como objetivo minar a autoridade e a legitimidade política das mulheres, sobretudo daquelas que ocupam posições de destaque em temas considerados sensíveis ou polêmicos, como é o caso da política ambiental.
O episódio também repercutiu entre especialistas. A professora e pesquisadora Flávia Biroli, uma das maiores referências nos estudos sobre gênero e política no Brasil, destacou em entrevista ao portal Terra que esse tipo de ataque não é um evento isolado, mas parte de um contexto mais amplo de violência política de gênero. Para Biroli, trata-se de uma violência estrutural, que atua para afastar mulheres dos espaços de poder e reforçar hierarquias de gênero, sustentadas pela ideia de que mulheres não pertencem ao debate político ou não são capazes de sustentá-lo com a mesma legitimidade que os homens.
Biroli ressaltou que o caso expõe como a violência política de gênero pode se expressar de forma simbólica, através de insultos e “piadas”, mas com efeitos concretos: o silenciamento das mulheres e a limitação de sua atuação política. “Não é apenas sobre Marina, mas sobre todas as mulheres que, ao ingressarem na política, são desafiadas não só pelas dificuldades inerentes à atividade, mas também pelo machismo que perpassa as instituições”, afirmou a pesquisadora.
Em resposta ao episódio, parlamentares de diversos partidos, incluindo PT, PSOL, PCdoB, MDB e PSB, apresentaram representação ao Conselho de Ética do Senado, pedindo apuração da conduta de Plínio Valério. A Procuradoria Especial da Mulher do Senado, órgão responsável pela defesa dos direitos das mulheres parlamentares, classificou a fala como “ato gravíssimo de violência política de gênero”.
O caso ganha ainda mais relevância à luz da Lei nº 14.192/2021, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, garantindo que toda mulher tenha direito à participação política livre de discriminações e violências. A norma tipifica esse tipo de violência como crime e prevê penas de reclusão, além de multa. Contudo, como evidencia a reação do senador, a aplicação da lei e a responsabilização ainda enfrentam resistência, especialmente quando a violência é disfarçada como humor ou excesso de franqueza.
A fala do senador Plínio Valério, e sobretudo sua recusa em reconhecer o erro, escancaram a dificuldade de avançar no enfrentamento à cultura política machista, onde agressões simbólicas são normalizadas e a responsabilidade é transferida para a vítima, acusada de excesso de sensibilidade. Esse padrão de comportamento não apenas perpetua a violência, como também compromete a qualidade da democracia, ao restringir a diversidade e a representatividade nos espaços decisórios.
O caso Marina Silva também reforça um aspecto fundamental da violência política de gênero: ela atinge, indistintamente, mulheres de diferentes perfis e trajetórias, inclusive aquelas com carreiras consolidadas e reconhecimento internacional. Marina, referência global na defesa do meio ambiente e uma das figuras públicas mais respeitadas do Brasil, não é a primeira e tampouco será a última a ser alvo desse tipo de violência, enquanto as estruturas institucionais não forem suficientemente robustas para coibir e punir tais práticas.
Por outro lado, a resistência de Marina Silva e sua decisão de não silenciar frente ao ataque se somam a outras iniciativas de mulheres na política brasileira que, historicamente, enfrentam e denunciam a violência de gênero. Sua fala pública após o episódio foi contundente: “O senador não teve coragem de dizer a mesma coisa quando o ministro Rui Costa ficou seis horas falando. A frase dele só se dirigiu a mim, mulher. Isso revela que a violência política de gênero está profundamente enraizada”.
Ao trazer esse debate para o centro da cena pública, o caso Marina Silva representa uma oportunidade de aprofundar a reflexão sobre a violência política de gênero como uma das expressões mais perversas da desigualdade de gênero na democracia contemporânea. A luta pela igualdade na política passa, necessariamente, pela denúncia e pelo enfrentamento dessas violências, que não podem ser toleradas sob nenhuma justificativa.
A violência política de gênero, como evidenciado pelo caso recente envolvendo a ministra Marina Silva, não é um episódio isolado ou um deslize pontual, mas parte de um sistema estruturado que visa inibir a participação das mulheres e reproduzir desigualdades históricas. Esse fenômeno, amplamente estudado por pesquisadoras como Flávia Biroli e Mona Lena Krook, revela que a política ainda é um espaço marcado por hostilidade e resistência à presença feminina.
Mona Lena Krook, em sua obra “Violence Against Women in Politics” (2020), enfatiza que essa violência é um dos principais obstáculos à democracia substantiva, pois ameaça o direito das mulheres de participar em condições de igualdade, segurança e dignidade. O caso brasileiro é um exemplo emblemático desse desafio.
Nesse sentido, o episódio não deve ser tratado como mera controvérsia política, mas como um chamado urgente para que a sociedade brasileira reconheça e enfrente a violência política de gênero como um grave problema democrático. A responsabilização dos agressores, o fortalecimento das legislações de proteção e o apoio institucional às mulheres políticas são passos fundamentais para transformar a cultura política nacional.
Por fim, a resistência de Marina Silva deve ser compreendida não apenas como uma defesa pessoal, mas como um ato político de afirmação das mulheres no espaço público. Sua postura inspira e reforça a necessidade de seguirmos denunciando, debatendo e enfrentando todas as formas de violência que limitam a participação das mulheres na política, na certeza de que uma democracia plena só se realiza com igualdade de gênero, respeito e justiça.
REFERÊNCIAS:
BBC News Brasil. “'Força de expressão' ou violência política de gênero? A fala polêmica do senador sobre Marina Silva”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ceqg02g3z8po. Acesso em: maio de 2025.
BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
BRASIL. Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021. Estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher.
CARTA CAPITAL. “Senador que atacou Marina reclama de acusações de machismo e diz que não vai pedir desculpas”. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/senador-que-atacou-marina-reclama-de-acusacoes-de-machismo-e-diz-que-nao-vai-pedir-desculpas/. Acesso em: maio de 2025.
G1. “Senador discute com Marina em comissão: 'A senhora não é mais ética que ninguém'”. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/05/27/senador-discute-com-marina-em-comissao-a-senhora-nao-e-mais-etica-que-ninguem.ghtml. Acesso em: maio de 2025.
KROOK, Mona Lena. Violence Against Women in Politics. Oxford: Oxford University Press, 2020.
TERRA. “Flávia Biroli analisa ataques a Marina Silva e a política de gênero”. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/terra-agora/videos/flavia-biroli-analisa-ataques-a-marina-silva-e-a-politica-de-genero,7f41567b581effafd57e9b224463725eaavewfnt.html. Acesso em: maio de 2025.
O episódio retrata nossa sociedade, na qual as mulheres são silenciadas, sobretudo em espaços que deveriam combater a violência de gênero.