Faz uma semana que levei meu filho na nutricionista. E faz exatamente esse mesmo tempo que a dieta que ela passou está guardada na minha gaveta. Ele não tem nada de grave. Apenas algumas poucas deficiências em vitamina D e B12 que vão ser ajustadas com o suplemento passado pela pediatra e a recomendação da nutricionista.
O da pediatra eu vou providenciar, mas o da nutricionista… Não é por negligência. É o cansaço causado pela maternidade de alta performance.
Na consulta, mesmo eu relatando todos meus esforços para meu filho ter uma boa alimentação, a nutricionista argumentou tudo aquilo que estava “faltando” e passou a escrever papéis e mais papéis delimitando outros tipos de cafés da manhã, almoços e jantares, com novas receitas, outros tipos de alimentos caros (e raros) de encontrar. Eu não consigo abrir e ler esse material. Sinto que, no momento em que fizer isso, irei destrancar uma caixa de pandora onde os males da maternidade de alta performance vão invadir minha vida de novo. Encarar essa dieta significa refazer minha rotina (de novo), ir mais vezes ao supermercado, parar mais vezes para testar as receitas, dedicar energia para tentar convencer meu filho (pela décima quinta vez) a gostar de brócolis ou espinafre. Tudo isso sozinha, super ocupada e terminando o dia completamente exausta com a sensação de que eu não consegui aproveitar nem 1 ⁄ 5 do dia.
Quem me acompanha sabe que já expliquei como vivenciei uma maternidade natureba, cheia de regras e detalhes para tornar a vida do meu filho “mais equilibrada” possível. Nada de glúten, açúcar ou leite nos primeiros anos de vida dele. Com a pouca grana que tinha, era incabível bancar essa opção. O jeito era cozinhar todos os dias porque, claro, ele ainda tinha que comer algo caseiro e fresco. Café-da-manhã, almoço e jantar feito na hora, rotineiramente, sem pausa ou concessões. Se não estivesse arranjando esse ambiente de alimentos, atividades, práticas, tratamentos mais naturais, estaria estudando sobre o assunto e descobrindo que, por exemplo, preciso extinguir o suco de fruta porque é pura sacarose, enquanto comer a fruta possui fibras e é a opção mais saudável. Eu estava empenhada em ser a melhor mãe do mundo e vivia exausta por causa disso.
Agora, dentro dos meus estudos sociais sobre a maternidade, posso conectar isso ao conceito de maternidade de alta performance que a pesquisadora Ana Luiza de Figueiredo Souza aborda em seu artigo onde, citando Orna Donath, explica:
“(…) o nível de exigência para com as mães é muito maior do que em épocas anteriores. Para dar conta das cobranças (inclusive autoinfligidas), precisam otimizar o tempo em uma maternagem e rotina baseadas na ideia de alta performance.” (p.12)
Às mulheres são cobradas mais do que serem boas mães. Elas precisam equilibrar todos os pratos das dinâmicas sociais sem perder esse posto. Necessitam ser bonitas, magras, sexys, inteligentes, boas profissionais, excelentes esposas, e mães exponenciais que administram todos os aspectos da vida desse ser em formação, sem vacilos.
“É preciso compreender a psique da criança, visitar seu universo lúdico, guiá-la rumo a descobertas e desafios. Revistas, sites e consultórios elegem a mãe como a principal responsável pelo desenvolvimento (psíquico, social, cultural, físico) dos filhos, assim como a maior culpada por suas desavenças”(p.119)
Ana comenta na sua obra “Ser Mãe é foda: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais”, abordando que essas perspectivas são alimentadas pelos discursos que ditam os lugares da mãe, especialmente os do médico e/ou especialista.
Eu tenho muito a dizer quando o assunto é a voz do médico. Já vivi experiências terríveis com vários tipos de especialistas. Desde a gravidez, encarei uma roleta russa de encontrar bons e péssimos profissionais nas consultas de pré-natal. Depois, o mesmo padrão aconteceu no pós-parto, nas pediatras e nos outros especialistas. Além da cena clássica de ser recebida sem qualquer empatia, com o olhar apenas no computador e certa irritação por estar me atendendo, sempre acontecia o dramas básico de me fazerem uma pergunta, eu responder, e logo ser cortada para me avisarem o que estava fazendo de errado, sugerindo até a possibilidade de eu estar colocando meu filho em risco (instalando mais um novo medo na minha maternidade). Não era algo apenas dos médicos/as de postinho do SUS. O mesmo ocorreu com os de planos, consultas particulares e até os mais “humanizados”. Meu discurso não era o foco da questão, apenas o alicerce para eles validarem sua autoridade.
Essa minha vivência não é um fenômeno isolado. De fato, os estudos feministas sobre a maternidade já entraram nessa questão, apontando como, historicamente, a medicina fez um papel crucial de opressão aos corpos femininos. Vera Iaconelli no seu livro “Mal-estar na maternidade: do Infantincídio a Função Materna” explica que a pós-modernidade é marcada por uma medicina que moderniza as tecnologias sobre a reprodução humana, e coloca o corpo feminino como dependente desses processos pelos seus aparentes defeitos e imperfeições, em uma patologização da saúde feminina. Com isso, a mulher cai em uma
“dupla impossibilidade: a de aprender o que não sabe e a de exercer o que não aprendeu. Quanto ao que ela sabe, costuma ser desautorizada; quanto ao que ela não sabe mais, é acusada de ter que saber.” (p.62)
Saber o quê? Tudo o que é considerado ideal para o pleno exercício de sua cria, segundo o paradigma científico e médico. Para ilustrar melhor, lembro de um post sobre uma mãe de três crianças comentando como era terrível ajustar as conclusões dos especialistas ao cuidado de seus filhos. Um precisava comer menos doce (segundo o nutricionista), mas não poderia ser retirado do local da refeição mesmo que houvesse um enorme bolo disposto à mesa porque isso afetaria sua sociabilidade (segundo o psicólogo). O outro precisava ser incentivado a fazer natação por conta dos problemas respiratórios (segundo o pediatra), só que a única academia com essa modalidade infantil era do lado oposto das aulas dos outros dois, que faziam judô. O horário também era incompatível. Era preciso deixar dois no judô, seguir para deixar o outro na natação, e meia hora depois pegar os do judô, deixar em casa, dar o lanche, chamar a babá — porque quinze minutos depois seria preciso pegar o da natação, que chegaria morrendo de fome e chateado porque não pode lanchar com os irmãos… A conta não fecha!
Foi o medo da opressão desse discurso tecnicista médico que me fez pender para o outro pêndulo: a maternidade natureba. Sentia que estava protegida nos ambientes que discutiam as violências obstétricas e apresentavam as alternativas mais eficientes que protegeriam eu e meu filho de viver terríveis traumas. Eram rodas de conversas, livros, palestras, depoimentos que me asseguravam que, naquele lugar, eu poderia exercer meu lugar de mãe — com excelência. Sim, esse também era um local de alta performance para a maternidade mesmo se fantasiando de que “cada mãe sabe o que é melhor para seu filho”. Demorei muito para entender que apesar de contraditórios, os ambientes médico e natureba se encontravam em um lugar: eles se colocavam como a autoridade certa da maternidade mais do que a própria mãe ou qualquer outro cuidador/cuidadora.
Vera Iaconelli também aponta isso em sua obra, ao pôr esses discursos lado a lado e apontar que, ao criticar a onipresença de especialistas e a dominância da biotecnologia feminina, para dar lugar ao um saber mais espontâneo em “que basta à mãe ser deixada com seu bebê para que algo de espontâneo advenha naturalmente” (p. 75), a maternidade natural ainda cai no erro de ditar a mulher sua dinâmica ao maternar, com imposições que vão desde o parto “certo” a amamentação livre o máximo possível, sem levar em consideração o cenário da mulher moderna e suas próprias escolhas e necessidades. Ela afirma:
“ambos os movimentos, da humanização e da biotecnologia, operam a supressão da subjetividade, em nome de uma humanização (que seria algo generalizável) e de um saber (sobre o corpo) que ignora o sujeito.” (p. 94).
Concluindo, a maternidade de alta performance acontece graças a força de discursos que criam expectativas sobre a prática materna, de acordo com seu ponto de vista. Sem enxergar o lugar da mãe como mais uma experiência dentro da vivência humana e sabiamente suscetível a ter várias nuances, possibilidades e caminhos coerentes ou contraditórios, o que prevalece nesses discursos técnicos ou “naturais” é encarar a maternidade como um compromisso de um coletivo que se apresenta como a autoridade certa do assunto. Enfim, se depender de mim, a dieta da nutricionista continuará na gaveta. Estou cansada. Médicos ou terapeutas humanizados, hoje a mãe não vai performar. Vai descansar.
FONTE:
SOUZA, Ana Luiza de Figueiredo. Tensionamentos maternos na contemporaneidade: articulações com o cenário brasileiro. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 123, p. 47–68, 2020. Disponível em: https://journals.openedition.org/rccs/10972?lang=fr
DE FIGUEIREDO SOUZA, Ana Luiza. Ser mãe é f*d@! — mulheres, (não)maternidade e mídias sociais. Editora Zouk, 2022.
IACONELLI, Vera. Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna. 2015. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
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