Embora a ideia seja antiga, e até fácil de compreender, o termo virtue signalling surgiu agora no mundo de língua inglesa, com um destaque aqui nas últimas duas décadas. Ela indica uma certa modalidade de ética, um gesto único e bem contemporâneo, principalmente dentro do nosso admirável mundo neoliberal.
A ética, na maior parte da história humana, era uma forma eficaz de organizar a experiência, um tipo de critério bem exclusivo dos humanos, quase como uma ferramenta adaptativa inevitável. Não faz sentido, por exemplo, observar seus contornos entre chimpanzés ou formigas, já que seus princípios de organização giram em torno de coisas como o instinto, esferas muito mais automáticas e pouco flexíveis. Mas, nos últimos tempos, por conta de plataformas como Twitter, Facebook, Tik Tok e Instagram, a ética se transformou em algo diferente, passando por uma mutação curiosa e que merece o olhar atento do sociólogo.
Em um mundo pulverizado, onde o indivíduo é a única instituição legitima e sólida, o resto do cálculo da modernidade, a ética deixa de ser um edifício institucional e coletivo, como sempre foi na história humana. Agora, completamente privatizada, ela recua rumo ao terreno íntimo de cada um, ao se transformar em um simples exercício narcisista de autoafirmação. Em um universo sem instâncias místicas, universais, muito menos objetivas, cabe ao próprio indivíduo a responsabilidade pela esfera dos valores. A ética se torna, portanto, uma performance, um show diário que deve ser assistido por uma certa plateia, seja ela física ou online. Por exemplo, não importa se você é contra ou a favor de Bolsonaro; não importa se você ama ou odeia a figura.... é preciso, antes de mais nada, performar sua indignação (ou apoio), tudo isso em um movimento constante (e até infinito) de postagens e outras formas de manifestações públicas.
Se há séculos atrás a ética era autoevidente e sólida, sustentada por enormes instituições de fundo místico, religioso ou mitológico, hoje ela precisa ser mantida por mim, o EU SOBERANO, como diria Elisabeth Roudinesco. Sua antiga autoevidência desaparece por completo, demandando agora um gasto de energia nunca antes visto, como se a ética fosse escapar por entre os meus dedos, caso eu não realize minha performance diária. Se eu não afirmo todo dia que eu sou uma boa pessoa, se eu não deixo claro a cada minuto o meu posicionamento em todas as plataformas por onde circulo, eu sou mesmo uma boa pessoa? Se eu não mostrar que eu estou indignado com as barbaridades do mundo, eu estou mesmo indignado? E a resposta é NÃO, ao menos de acordo com as regras neoliberais. Em um mundo tão neoliberalizante, até o próprio Descartes ganha uma repaginada curiosa. Em vez do clássico “penso, logo existo”, agora temos o “twiitto, logo sou”!!!
Diante desse detalhe da ética contemporânea, você poderia perguntar: “Thiago, a ostentação ética (virtue signalling) é verdadeira ou falsa?”. Em vez de oferecer uma resposta, eu diria que a pergunta enquanto tal é um problema, já que essa prática do virtue signalling pode conter dentro de si tanto fatos quanto fakes. A ostentação ética independe de um julgamento epistêmico (verdadeiro ou falso). Não importa a legitimidade do fato compartilhado, o que importa mesmo é sua infinita repetição. Nesse sentido, não basta apenas ser contra (ou favor de Bolsonaro), é preciso também performar constantemente esse gesto, todo dia, toda hora. Essa prática repetida, como é comum na própria psicanálise, é sempre um indicativo de algo mais acontecendo nos bastidores, um tipo de “surplus”, um excesso que escorre das paredes do fenômeno. Se todo dia eu manifesto meu posicionamento contra ou a favor de Lula, seja através de memes ou outras postagens, esse gesto obcecado, repetido, fala mais sobre mim do que sobre o conteúdo em jogo. Em outras palavras, mesmo compartilhando fatos, informações completamente verificáveis e legítimas, ainda assim a ostentação ética pode estar presente, bem ali na esquina do dito e do feito.
Além disso, a virtue signalling não apenas brota em um mundo como o nosso, de indivíduos pulverizados e famintos por identidade e reconhecimento, mas também independe de posição política. É possível observar suas digitais tanto na direita, e sua defesa dos cidadãos de bem e pais de família, assim como na própria esquerda e suas táticas próprias de julgamento. Ambos participam de plataformas narcisistas de autoafirmação, por mais que superficialmente sejam contrárias umas as outras. Nos bastidores, em um nível mais estrutural, esquerda e direita reforçam o mesmo espaço de jogo. É mais ou menos como assistir uma partida entra Bahia e Vitoria. Não importa o seu time preferido, ambos reproduzem as mesmas regras do jogo, nesse caso, o futebol. A rivalidade de ambos os times não nega um tipo de conservadorismo de fundo. Isso significa que o virtue signalling é a ética do mundo neoliberal... é uma ética neoliberalizante.
No espaço mercadológico, o virtue signalling se transforma em uma ótima maneira de agregar valor a certas mercadorias, sejam camisas ou até mesmo hambúrgueres: “compre meu produto e você pode ajudar a hashtag #me too”. Em outras palavras, o consumo é agora visto como um espaço de redenção, talvez um tipo de substituto imperfeito do universo religioso. Como as grandes entidades metafísicas não existem mais, como os templos religiosos perderam bastante legitimidade, migrando ao reino do privado, o consumo assume o controle da esfera pública. A ética não está em simples práticas cotidianas e imperceptíveis, mas no consumo de certas mercadorias que sinalizam minha posição de indivíduo emancipado.
Na prática, existe alguma vantagem na ostentação ética? Pesquisas mostram que não, como nos próprios estudos do psicólogo social Jonathan Haidt. O virtue signalling não produz nenhuma consequência prática no mundo. Não existe nenhum ganho efetivo, inclusive quando o assunto são os direitos e a vida das minorias. A maior parte das transformações acontecem nos bastidores, feitas por entidades especificas e politicamente articuladas. Elas, sim, tem impactos legítimos na forma como negros, mulheres, gays lidam com certos obstáculos estruturais. Por outro lado, o tumulto que acontece no Twitter, por exemplo, diante de algum assunto aleatório, quase nunca produz efeitos práticos, a não ser um prazer imediato e privado. A virtue signalling, assim como sua face mercantilizada por certas marcas famosas, apenas reforça um jogo narcisista de autoafirmação. Ela transforma a ética em um tipo de capital que deve ser acumulado, um simples objeto de consumo clamando por visibilidade. A virtue signalling, por esse motivo, é nada mais nada menos do que os efeitos de um mundo neoliberal e de uma ética completamente privatizada. Não existem mais grandes instituições, muito menos valores universais e objetivos, mas apenas um indivíduo pulverizado e seu constante gesto de autoafirmação.
REFERÊNCIA DA IMAGEM:
https://www.gq-magazine.co.uk/article/virtue-signaller
Não sabia que isso tinha nome. Foi muito interessante ler o texto e descobrir algo que já tinha observado nesses meios e ainda me encontro em conflito sobre concluir se isso totalmente inútil. Estudo muitas movimentações políticas feministas que foram beneficiadas desses posicionamentos escancarados e inflamados das redes. Enfim, ainda pensando sobre o assunto....