No início do ano nosso sotero Ramon Argolo escreveu um texto intitulado “A finitude é um grande dilema”. Nele foi feita uma reflexão sobre como a questão da morte foi apagada com o capitalismo e como este tema é evitado de ser falado. E foi justamente a partir desse texto-incentivo que resolvi falar sobre a morte e o morrer. Destaco que quando falamos de algo, ele ganha forma e somente assim podemos trasnFORMAr o sentido do que já trazemos em nós.
A morte geralmente é sinônimo de medo, superstição, tristeza, depressão e fim. Em um contexto social onde estar feliz e de bem com a saúde é algo divulgado o tempo todo em redes sociais e na mídia diversa, falar sobre morte é bizarro. Alguns falam que é agorento, outros que quem fala deste assunto deve ter uma vida triste e/ou esquisita e outros ainda que não vale a pena perder tempo falando da morte, pois “a vida está aí para ser vivida”.
Sim, a vida é para ser vivida! Mas falar sobre a vida sem mencionar a morte é no mínimo uma negação. Até porque uma só existe porque ao outra está presente. Quando nascemos já se inicia o cronômetro rumo ao fim. Sim, vamos morrer! Haverá um corte em algum momento. Falar sobre a morte é reconhecer que vivemos arrodeados de morte: guerras, violências, homicídios, suicídios, acidentes, doenças terminais, etc. Não enxergar isso é assumir uma certa alienação, é também negar que um dia se vai morrer.
A morte vem sendo banalizada e silenciada ao longo dos tempos. Antes o processo do morrer era familiar: a pessoa era velada em casa, o corpo estava presente, os vizinhos sabiam e participavam, havia uma normalidade na morte. Aqui falamos antes do século XVIII, quando inclusive, morria-se muito, pois a medicina estava longe dos seus atuais avanços. Com a chegada dos cemitérios, até por uma questão de higiene, a morte é afastada do reduto familiar. Ela é terceirizada e capitalizada. Vale lembrar que ainda encontramos este hábito de velar o corpo em casa nos interiores, onde o carro de som avisa quem faleceu.
Hoje acompanhamos o mercado da morte: maquiagens para os defuntos, caixões caríssimos, cemitérios paradisíacos, compra de terrenos que custam verdadeiras fortunas. Morrer passou a dar trabalho e custar alto! A morte foi banalizada. É importante lembrar que o advento dos hospitais retira o tratamento da pessoa adoentada de dentro de casa, da proximidade com a família. Esta tantas vezes vai morrer sozinha em uma UTI, sem ninguém conhecido ao seu lado, somente aparelhos e a equipe de saúde. Dali a pessoa é levada para o necrotério, que sempre fica em um espaço escuso do hospital e inicia-se os trâmites burocráticos.
Abalado pela pessoa que morreu, o enlutado precisa lidar com valores exorbitantes, pensar em papeladas diversas, avisar a inúmeros órgãos sobre o falecido, enfim, uma saga complicada e desgastante. Mas de tudo isso não se fala, não se sabe enquanto não se tem contato. A morte está ali, colada ao nosso dia a dia, mas fingimos que ela é uma falácia, ou melhor, “que nunca acontecerá com a gente”. Isto é bem pior, pois beira a prepotência, por vezes, não consciente.
Falar sobre morte é reconhecer inclusive, que é preciso planejá-la para não deixar quem fica com dívidas até a morte (risos). Tocar nesse assunto é aproveitar o que se pode da vida, reconhecer limites e a incapacidade humana de ser um Deus. Somos imortais, a finitude é o caminho, não há para onde ir, pelo menos até o momento. Aqui não falo de crenças que falam de outra vida, mas do fim do corpo que vivemos, da sua decrepitude.
Bom que temos visto a mídia e até a literatura cada vez mais falando sobre o tema, mesmo que ainda pouco. Há inclusive livros infantis. Esse assunto, inclusive, deve ser falado desde a infância tanto pela família, como pela escola. Naturalizar o assunto é preciso. Levar as crianças para enterros e velórios auxilia no reconhecimento de uma fragilidade humana e acima de tudo, da beleza que é a vida. Olhar para a morte é enxergar a vida. É escutar o tempo, é um chamado a nos ver como seres dependentes e nem tanto especiais como tantas vezes achamos ser.
Deixo aqui algumas dicas que auxiliam na ressignificação da morte:
TED: A morte é um dia que vale a pena viver | Ana Claudia Quintana Arantes: https://www.youtube.com/watch?v=ep354ZXKBEs
Livros: “A morte é um dia que vale a pena viver”, de Ana Claudia Quintana Arantes; “O Pato, a Morte e a Tulipa”, de Wolf Erlbruch e “Contos de Morte Morrida”, de Ernani Ssó. Os dois últimos infantis.
Filmes: “A sociedade da neve” e “Viva, a vida é uma festa” (infantil).
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As nossas células morrem
todos os dias e praticamente já “morremos inteiros” desde que nascemos até hoje. Somente algumas células podem permanecer com a gente durante toda a vida. Ou seja, morremos todos os dias. E como diria Fernando Pessoa: “O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.”
Tão mais simples se aceitarmos isso. Adorei o texto!
A morte já foi uma festa,inclusive cortejos fúnebres já foram seguidos e acompanhados por muito samba. A morte também já foi teatral,com carpideiras fazendo escândalos. Agora é "liberal": explorada e mercantilizada. Ótimo texto!
Texto sensacional!!!
Um ótimo texto com uma temática muito importante! Você trás reflexões necessárias! Parabéns!
Quando vi o título do texto, já lembrei do livro da Ana que vc indica no final. "Histórias lindas de morrer" é outro dela fascinante! Fala sobre histórias de pacientes terminais e como a morte pode ter muitos significados. Acho essencial oq vc falou sobre vivenciar de perto a morte. Hoje mesmo isso aconteceu. Minha gata matou um passarinho e disse ao meu filho que era papel dele fazer o enterro do passarinho no jardim do condomínio junto com seus amigos. Vi os olhos deles brilharem de emoção pela morte do bichano. Ele cumpriu o que pedi e depois veio compartilhar comigo como se sentiu <3