John Everett Millais. The Death of Romeo and Juliet, 1848. Arquivo da Manchester City Art Galleries.
Diferente de nossas prosas passadas, desta vez não pretendo falar sobre política. Ao menos não em sua forma mais explícita, mais formal. Minha proposta é criar algo que se situe entre a divagação e a reflexão, fruto das experiências que os meus vinte e poucos anos, embora curtos em termos absolutos, me permitiram acumular em relação a coisas que já vi, vivi ou ouvi.
Umas das lições mais interessantes que aprendi é a de que a despeito do período, lugar ou contexto, a literatura – assim como a arte de um modo geral – consegue se comunicar conosco, seja de forma a mostrar tempos vividos em uma época, costumes, mudanças de comportamentos, ou de forma mais íntima, nuances do comportamento humano. Não à toa, as tragédias gregas, mesmo com milhares de anos de decantação histórica, continuam a nos dar boas lições. Para aqueles que duvidam, faço o convite de visitar as obras de Sófocles como Édipo Rei, ou mesmo de Homero que é mais famosinho, com A Ilíada e A Odisseia.
No entanto, embora cada autor tenha a sua intenção mais ou menos explícita ao escrever sua obra, após terminada – por diversas razões – ela passar a ser de livre interpretação: cada época de forma mais geral e cada homem de maneira específica, lê e compreende de acordo com seus valores e intenções. Creio que não haver exemplo tão característico do que acabei de falar, do que Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Replicada e readaptada para o cinema, música, teatro e literatura, essa obra do bardo inglês demonstra que o olhar de quem interpreta pode não apenas captar um aspecto da obra, mas também transformar esse aspecto como sendo praticamente o único. Embora a história do casal italiano seja um exemplo forte do poder do amor, que por sua vez inspirou jovens no mundo inteiro, não era este o mote principal da obra, ao menos em suas primeiras versões.
Inicialmente, quando Shakespeare tomou conhecimento da história (não meus caros, a história já existia e ele apenas a adaptou, modificando em alguns aspectos) não era de amor de que tratava, mas sim de um recado explícito contra a impetuosidade da juventude e suas consequências. Mais do que isso, a ideia original de Romeu Montéquio e Julieta Capuleto era demonstrar a importância da obediência dos jovens aos costumes e assim evitar as paixões impetuosas que nada criariam, exceto problemas. Afinal, tivesse Romeu segurado a onda e mantido sua paixão por Rosalina e Julieta se atido à aversão da sua família pelos Montéquios, a tragédia não teria ocorrido.
No entanto, mais do que colocar em evidência a capacidade redentora do amor (afinal após a morte do casal, a animosidade das famílias se acaba), Shakespeare acabou nos mostrando a dimensão da capacidade humana da força da vontade. À luz da razão, provavelmente seria mais confortável para Romeu e Julieta que seguissem suas vidas de acordo com status quo, reproduzindo o desejo dos seus pais e das estruturas familiares, onde provavelmente levariam vidas sem maiores temores. Afinal, atire a primeira pedra quem nunca evitou entrar em conflito, seja alguém, seja com alguma situação, pelo simples motivo de estar em paz, confortável.
Indo de encontro com a tendência à obediência e a tradição, Romeu e Julieta nos ensinaram o potencial poderoso que a vontade pode carregar: em nome de um ideal (o amor), eles empreenderam esforços para a realização da felicidade mútua, causa esta que devido às circunstâncias de um amor proibido, custou a vida de ambos. Se deparando com a situação adversa, a força da rebeldia tende a não se deter em limites, nem naqueles impostos pela força, mas que pelo contrário, os ultrapassa. Particularmente, falar de Romeu e Julieta é falar na rebeldia e revolta, na manifestação mais humana de não se submeter à estabilidade e à vontade de dominação, onde agir em nome de um ideal é não levar em conta as consequências, por mais trágicas que sejam.
Afinal, força da revolta animou os estudantes húngaros em 1956 e que desencadeou em uma revolução em todo o país contra o regime totalitário, é de alguma forma a mesma que impulsionou Martin Luther King ao se exigir igualdade de direitos no alto da tensão racial nos Estados Unidos (se for possível dizer que o racismo norte americano já viveu algo além do seu limite), mas que naquele momento, acredito eu que apenas um resultado importava. A revolta, seja ela mais ou menos imposta em direção de um objeto, é mais do que estado de espírito, mas sim uma característica humana, única como tal, de não se submeter à situação imposta, nem tampouco ser um mero ator em uma peça com script já determinado. Mesmo sendo personagens de uma peça, Romeu e Julieta fizeram tudo, menos cumprir papéis. E talvez por isso, é possível que haja mais de Romeu e Julieta na nossa História do que percebemos.
Não quero aqui fazer uma defesa inveterada do tempestuosidade e da insubmissão que é tão típica da juventude. Todos nós já agimos de forma açodada e que provavelmente teve consequências para nossas vidas – algumas delas ruins. É com o passar dos anos que todos os maus exemplos e erros que cometemos, se decantam em nossa experiência e nos tornam mais prudentes. Experiência é a palavra-chave, afinal como diz o ditado, o diabo não é o diabo porque seja mau, mas porque é velho e com o tempo, a impulsividade das paixões e das atitudes de contestação que nos tomam principalmente na juventude, vão cedendo espaço à ponderação, à parcimônia e à reflexão diante da necessidade de tomar qualquer atitude. De alguma forma, é com o tempo que nos tornamos mais covardes frente à vida.
Mas embora seja plausível associar o espírito da rebeldia e insubmissão às regras ao período da juventude (e o casal de Verona deixa isso bem explícito), não podemos perder de vista que a capacidade de nos colocar contra determinadas circunstâncias é um atributo que não se esvai com o tempo e que é uma chama que os gélidos ventos da maturidade não devem apagar por completo. No entanto, os exemplos utilizados aqui acabaram tendo a morte como desfecho – Romeu e Julieta cometeram suicídio, a revolução iniciada pela manifestação estudantil húngara acabou em massacre e Luther King foi baleado em Memphis – e parecem depor a favor de ações mais conservadoras e ponderadas. Afinal, sendo a prudência uma manifestação do desejo de preservação da vida, são esses os exemplos do que não se deve fazer diante de alguma situação adversa. Talvez mais experientes, tivessem optado por seguir as regras e não se opor a uma força maior do que eles.
Contudo, a grande lição a ser retirada dessas histórias não está exatamente no final imediato, mas sim no legado inesperado que tais ações desencadearam. Se o fracasso pode ter sido aparente, o simbolismo dos atos mencionados desencadeou a paz entre Montéquios e Capuletos (e por tabela a paz de Verona), no exemplo para revoltas no Leste Europeu contra a brutalidade do regime soviético e para intensificação da luta por direitos civis dos negros. Embora a prudência invariavelmente nos torne de alguma forma conservadores e avessos a mudanças, tentemos sempre nos lembrar dos exemplos na história que nos legaram a afirmação promissora de, em alguns casos, a revolta não é apenas direito ou dever, mas a manifestação da capacidade humana de criar algo novo e inesperado.