Provavelmente todos os leitores devem conhecer alguma versão cinematográfica da obra Drácula do escritor irlandês Bram Stoker. Muitas versões foram feitas, com ênfase dada a diferentes aspectos da trama, com adaptações no enredo, para tornar mais atraente ao público. De todas as que conheço, as que considero como verdadeiros clássicos do cinema são a primeira versão do Nosferatu, do cineasta expressionista alemão F. W. Murmau, de 1922, a versão do mesmo Nosferatu dirigida por Werner Herzog, intitulada no Brasil de “Nosferato – o vampiro da noite”, e a versão americana e bem mais sensual de Francis Ford Copola, de 1992, intitulada “Dracula de Bram Stoker”. Destas três versões, a que mais me chamou a atenção e que, a meu ver, mais fomenta reflexões, é a versão de Werner Herzog.
O enredo, que provavelmente todos já deve conhecer, traz a história de um agente imobiliário chamado Jonathan Harker, que vai até o castelo do Conde Graf Orlock (ou simplesmente nosso Drácula) para lhe vender uma casa em Viena. Lá, o conde de aparência bem estranha que mais lembra um rato, se atrai pela foto da esposa do jovem corretor e, mordendo-o durante a noite, o aprisiona em seu castelo, partindo logo em seguida para Viena em um barco que carrega vários caixões e ratos.
Durante a viagem, o conde Drácula ataca toda a tripulação, matando a todos, que são jogados ao mar, de modo que o barco chega a seu destino deserto, tendo apenas o corpo do comandante amarrado morto ao leme e uma infinidade de ratos. As autoridades locais, incluindo médicos, tentam investigar a causa morte do único tripulante encontrado a bordo, mas o único sinal é apenas duas pequenas marcas no pescoço do cadáver, que lembram as presas de um roedor.
Chegando em Viena, o conde Drácula carrega seus caixões e se esconde num sobrado abandonado e lá começa a proliferar seus ratos, enquanto ataca a população local, espalhando a peste, o terror e a morte.
Agora chegamos no que talvez esse seja o ponto alto e mais significativo da versão do Nosferatu do Herzog: a imagem da sociedade corrompida e da banalização da morte, dada a propagação da peste e dos ratos por toda a Viena.
Mortas as autoridades, médicos, religiosos e até os agentes funerários, que poderiam tratas dos vivos e da preparação da alma dos moribundos e dos corpos dos mortos, os poucos sobreviventes se entregam a um estado de desregramento moral, entregando-se a uma loucura boemia de festas e banquetes na praça central da cidade enfestada, comemorando a vida na certeza da morte iminente. Os corpos já não são enterrados, permanecendo os caixões pelas ruas e toda a cidade se vê definitivamente invadida pelos ratos que tudo infectam e consomem.
Embora a imagem nos pareça bem cataclísmica, na verdade ela nos serve como metáfora que podemos empregar de modo a nos ajudar a refletir sobre a realidade politica e social brasileira dos nossos dias. Apesar de o filme ser europeu, constitui-se um clássico de caráter universal, e, embora ambientado na Viena do século XIX e retrate, provavelmente com grande fidedignidade o episódio do surto de peste bubônica que assolou a Europa na Idade Média, seu efeito estético e sua mensagem de crítica à sociedade e à política se fazem presentes e atuais, como retrato alegórico de toda sociedade entregue a um regime de poder predatório que consome o povo e o entrega a um estado de profunda desespero e caos.
Curiosamente, hoje somos governados por um politico que é caricaturalmente representado como o Conde Drácula. Conde em seus modos excessivamente formais e solenes de se expressar, via linguagem erudita e rebuscada, muito distante do povo que representa, encarnando uma dignidade e nobreza nos modos estranhos ao estilo despojado, informal e descontraído do brasileiro, ao ponto de às vezes parecer estrangeiro em sua própria terra.
Esse mesmo presidente – golpista ou não – alimenta uma elite constituída por “políticos ratos”, que se alimentam das riquezas drenadas das veias do povo, de toda a nação, se fartando em grandes banquetes patrocinados pelos impostos pagos por todos nós, deixando-nos consumidos, desvitalizados, “zumbizados” pela falta de perspectivas de mudanças que venham de encontro às reais expectativas sociais. E, para completar, temos a bela primeira dama, jovem e burguesa, que nos remete à Lucy Harker, esposa do agente imobiliário.
Ao final do filme (sim, aqui vai o spoiler do final!), a Viena está completamente deserta, consumida por ratos e, apesar da morte do Conde Drácula, transformado em pó pelo feixe de luz do dia, deixa como seu herdeiro maldito o próprio Jonathan Harker, o agente imobiliário que, mordido pelo conde, é contaminado pelo vampirismo e vaga, em cima de um cavalo sobre uma planície deserta, em busca de uma nova morada e de novas vítimas.
Ao invés de um final redentor, o Nosferatu nos traz uma mensagem pessimista que aponta para a perpetuação e continuidade maldita do vampirismo predatório. O mesmo talvez se aplique à nossa política brasileira, que de tão corroída pela imoralidade da alta cúpula do governo, infectando todos os três poderes, não traz nenhuma perspectiva concreta de melhora, mas apenas se mostra na sua forma mais grotesca de banalização da corrupção , do crime organizado, da dilapidação dos bens públicos e na exploração de um povo que, no desespero, se entrega a formas cada vez mais alienadas de diversão e consumo, na tentativa de entorpecimento diante da inevitável entrega do pescoço, para ter o sangue drenado, anestesiados e hipnotizados diante do absurdo.
É surpreendente constatarmos as semelhanças entre o Nosferatu de Herzog e o atual cenário político brasileiro. A titulo de conclusão, não posso deixar de incluir nesse artigo, algumas charges que encontrei na internet que ilustram bem essa sincronicidade roedora-vampiresca que, só mesmo um pouco de nosso senso de humor cínico – na melhor acepção ético-filosófica da palavra – nos permite ter. O presidente conde Drácula retratado por nossos cartunistas, é a face burlesca do escarnio que nosso povo pode materializar, diante dos absurdos e abusos de poder de nossas elites politicas.
Por via das dúvidas, leitores, se rodeem de sal grosso e se protejam com colares de alho, estacas de madeira na mão, pois nossos pescoços estão com as veias latejando de indignação, mas os vampiros e ratos políticos continuam sempre e cada vez mais insaciáveis na sua sanha devoradora dos frutos de nosso trabalho conquistado com muito suor e sangue.