Observatório da loucura, Luiz Fernando Calaça (2017)
Salvador, como todo grande centro urbano, é uma cidade de grandes contrastes, isso é inegável. Esses contrastes estão presentes tanto na sua diversidade étnica, religiosa e cultural, quanto nas diferenças sociais que se fazem presentes na convivência nos espaços urbanos das ruas, praças e avenidas.
Acostumados casa vez mais à proteção dos nossos carros e apartamentos sempre bem refrigerados com arcondicionados, ou guardados por guaritas, janelas e venezianas cerradas, muitas vezes não nos damos conta de todo esse contraste. Esse só nos chega quando usamos os transportes coletivos, quando paramos nos semáforos ou precisamos transitar por ruas e calçadas do centro da cidade. Porém, em qualquer lugar que andemos nos depararemos, uma hora ou outra, com a pobreza e a mendicância.
É sobre esse tema que gostaria de tratar neste artigo: a mendicância na cidade de Salvador, e, particularmente, as diferentes formas de sua manifestação na cidade, que distinguem os que chamarei de “andarilhos” e “habitantes” de rua da soteropolis.
Residente no bairro do Rio Vermelho e acostumado a transitar pelos bairros do centro de Salvador, de Itapuã ao Pelourinho, a pé, de carro ou de ônibus, me deparo diariamente com figuras já conhecidas de diferentes andarilhos e moradores das ruas. Na rua em que resido, especificamente, cruzo quase que diariamente com quatro ou cinco dessas figuras já por mim conhecidas. Sempre que as vejo me ponho a pensar os motivos que levaram essas pessoas a estarem hoje nas ruas.
Não é difícil inferir pelos menos três ou quatro motivações que levam as pessoas a fazer das ruas seu principal habitat: 1) o desemprego, que faz com que muitos trabalhadores busquem o sustento no mercado informal ambulante; 2) a imigração ou a migração rural-urbana; 3) a condição de marginalização associada a dependência química (incluindo desde o alcoolismo até as drogas ilícitas, em especial o crack); e 4) a loucura, moradores de rua portadores de transtornos mentais graves.
Quanto à questão social, percebemos cada dia mais o aumento de pessoas pedindo dinheiro, seja nos pontos de ônibus, seja nos coletivos, quase sempre se referindo direta ou indiretamente à perda do emprego, à busca de emprego na capital, pessoas que se aventuraram na cidade grande e foram vítimas de assalto, pedindo contribuição para poder retornar a suas cidades de origem, ou ainda pedindo dinheiro para dar entrada numa “guia” para começar ou continuar a vender produtos como vendedores ambulantes.
Há uma diversidade muito grande entre esses andarilhos urbanos, desempregados, ambulantes, pedintes e mendicantes que buscam, diariamente, recursos para continuar a viver de forma minimamente digna, trabalhando e buscando o pão para seu sustento e de sua família.
Já há uma expressão que se tornou clássica: “Eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui trabalhando e pedindo uma ajuda”. Esse clamor feito de diferentes formas, com diferentes níveis de sofrimento, mostra um lado da nossa sociedade que diariamente nos rompe o silêncio de nossas individualidades e nos tira da zona de conforto, a partir de um chamado aflito, de um pedido de ajuda, que visa nos sensibilizar para a humanidade do outro, por nós desconhecido.
Muitas vezes mantemos nossa indiferença, fechando os vidros dos carros, fechando os olhos no ônibus, fingindo que dormimos, mas outras vezes nos sensibilizamos com essas pessoas e ajudamos com alguma moeda ou comprando alguns itens que trazem nas mãos, seja por um impulso de solidariedade ou para nos livrarmos e nossas consciências do importuno incomodo momentâneo, assegurando um pouco de nossa paz interior, via exercício de uma pseudo solidariedade desengajada.
Essa ação individual de cada um de nós, que dá uma esmola ou compra um doce, uma trufa, um salgadinho, um chaveiro, uma caneta ou um porta documentos, é momentâneo, não soluciona os problemas sociais de desemprego ou subemprego dessas pessoas, mas reduz nossa tensão interna, aliviando-nos do receio e do sobressalto de sermos assaltados, estabelecendo uma cumplicidade silenciosa e anônima entre quem pede ou vende, e não rouba, e aquele que dá a esmola ou paga por uma miudeza, mas não é roubado.
Há, no entanto, uma grande diferença entre aquele que pede esmola e aquele que vende uma miudeza. Aquele que vende, um ambulante, ainda se insere de algum modo nas relações de troca comercial, oferece um serviço, um “passa tempo da viagem”, que lhe confere um pouco mais de dignidade, mesmo que ainda assim esteja embutido um clamor de ajuda e de sensibilização, para alimentar uma família deixada à espera do pão.
Àquele que, em situação mais precária, pede uma esmola ou ajuda, a situação é um pouco mais complexa. Se formos pensar do ponto de vista social, histórico e cultural, o lugar da esmola faz parte da nossa matriz cristã, que prega a caridade ao pobre e desvalido, principalmente aos orfãos e viúvas. Numa sociedade cada vez mais indiferente ao humano, no entanto, a esmola deixa de ter um lugar de prática altruísta de solidariedade e caridade, passando a ser um placebo ou um paliativo para as tensões sociais existentes entre pessoas estranhas, de diferentes status sociais, que se cruzam nas ruas e nos coletivos.
Ainda assim, mesmo se tratando de uma reação voltada apenas para aplacar uma tensão momentânea, esse encontro não é totalmente destituído de afeto. Há uma possibilidade de o incomodo romper a indiferença, mesmo que isso se dê por alguns poucos segundos. Há a possibilidade de olharmos a humanidade do outro e sermos tocados em nossa humanidade, nos deparando com as fragilidades de nossa existência através da miséria do outro, o que não nos faz melhores ou piores, mas talvez, menos impessoais e indiferentes.
Dentre aqueles que pedem, uma esmola ou uma contribuição, há ainda os artistas de rua, uma categoria a parte, que está no “entre-lugar” do vendedor e do pedinte. Seja um cantor, um violonista, um sanfoneiro, sertanejo, sulista ou gringo "hermano latino-americano", um palhaço ou um poeta, eles irrompem o silêncio vendendo uma arte mambembe que, embora não agrade a todos os gostos e ouvidos, e às vezes incomode o sono do trabalhador cansado da labuta diária, rompe a rotina e traz um pouco de beleza, alegria, poesia ou reflexão.
Na hora de passar o chapéu e receber a gorjeta, tal qual o vendedor ou o pedinte, este dito artista ambulante, sem nome, origem ou destino, mas, às vezes, figura já conhecida das idas e vindas dos trajetos rotineiros, busca também nos conquistar e nos sensibilizar, trazendo-nos para o humano real que busca seu ganha pão, vendendo o imaterial, tentando uma cúmplice troca momentânea de afetos impalpáveis.
Distintamente dos andarilhos, vendedores, artistas ou pedintes, nos deparamos com os moradores de rua, que identificamos ou como dependentes químicos, alcoolistas e usuários de drogas ilícitas, ou como portadores de transtornos mentais graves. Diferentemente dos anteriores, estabelecemos com essas pessoas uma relação distinta, distante da sensibilização via solidariedade, mais próximo de um incomodo que tem muito mais a ver com o medo, a aversão, a repulsa e a pena.
Quanto aos usuários de drogas, quase sempre fazemos uma associação com a criminalidade, o que nos faz temer ser abordados ou tomados de assalto. No caso dos alcoolistas e portadores de transtornos mentais graves, nos vem o medo de sofrermos algum tipo de violência, pela associação que fazemos entre loucura ou desrazão e agressividade.
Essas diferentes reações nos faz pensar sobre a forma como lidamos com a questão dos transtornos mentais em nossa sociedade, estigmatizando, excluindo e colocando essas pessoas na condição de "sub-humanas" ou "anormais".
A loucura nos traz aversão, nos traz o incômodo que se manifesta não apenas na desconexão do outro em relação à nossa realidade normatizada, mas no próprio corpo do louco, na sua roupa suja e mal cheirosa, nos trapos que carregam, na sua inércia jogada no chão, dormindo nas calçadas, ou nos gestos e comportamentos paradoxais, na sua fala desorganizada ou silêncio ensimesmado. Tudo isso nos desidentifica dessas pessoas, de modo a voltarmos sobre elas um olhar ora de medo, ora de pena, de repugnância, mas, quase nunca, de solidariedade.
Retornando à realidade de Salvador, me chama atenção especificamente essas pessoas que habitam as ruas, que se encontram completamente à margem da sociedade, estabelecendo quase sempre contatos precários com as outras pessoas. Embora tendamos a manter uma certa indiferença, buscando ignorar suas presenças em nossos caminhos, eles nos trazem um incomodo que não nos permite ser totalmente indiferentes. Elas nos “incomodam”, atrapalham nosso caminhar pelas ruas, estendidos no chão, às vezes suplicando por uma esmola, ou nos afetando com seus odores, olhares e trejeitos.
Deitados no chão dormindo ou ressaqueados, parados ou caminhando, falando sozinhos ou discutindo sabe-se lá com quem, revirando restos de lixo, vivem suas existências privadas quase sempre desconectados das rotinas, dos fluxos e da agitação da vida urbana. Embora anônimos para a grande maioria da população, relegados à condição de indigência, tornam-se familiares, vizinhos, próximos, pois constantemente cruzamos com eles em nossos caminhos diários.
Diferente dos vendedores ambulantes, artistas ou pedintes dos coletivos e pontos de ônibus, esses habitantes das ruas quase sempre estão ou nas imediações de um mesmo bairro, ou cruzando nossos caminhos pela cidade, sendo facilmente reconhecidos e identificados. Tornam-se personalidades, personagens do cotidiano da cidade, anônimos sem identidade e, ao mesmo tempo, singulares. São figuras marcantes que habitam o nosso cotidiano, porém que mantemos seguramente apartados de nossas vidas, por nossa indiferença cautelosa, apesar do incomodo e da perplexidade que nos afeta, remetendo-nos à fragilidade humana e ao desconcertante fantasma da desrazão. |
Com tudo isso me pergunto, qual a atenção dada a essas pessoas que habitam as cidades e tem nas ruas sua morada? A nível individual, creio que de algum modo elas estabelecem vínculos de colaboração que garantam minimamente sua sobrevivência, seja pela esmola, seja recebendo alimentos dos comerciantes e de algumas poucas almas solidárias das vizinhanças. Há ainda a possibilidade de serem assistidos por alguma ação pontual de instituições de caridade, vinculados a igrejas ou centros espiritas, que distribuem roupas e alimentos.
De todo o modo, acredito que haja uma grande lacuna da assistência prestada pelo governo a essa população que se encontra à margem da sociedade, muitas vezes tão alienadas de si quanto de seus direitos a dignidade e humanidade. Sei da existência de serviços de abordagem de rua, que recolhem muitas dessas pessoas dos espaços públicos e levam para albergues da cidade, porém estes sempre retornam e desconheço se, após uma breve estadia nesses albergues, há algum tipo de acompanhamento posterior a essas pessoas, que quase sempre estão nas mesmas condições de mendicância e abandono.
Vejo muitos revirando os lixos da cidade em busca de materiais recicláveis, mas não sei até que ponto a maioria está integrada a ações dirigidas a essa prática de subemprego, via cooperativas de coletores, ou se buscam nos lixos algo com que possam de fato se alimentar ou utilizar em suas necessidades básicas. De um certo modo, aqueles que se integram a essas coorporativas tem algum tipo de assistência e se inserem de alguma forma dentro de projetos e políticas sociais, tendo o resgate mínimo de dignidade e de cidadania. Porém não creio que a maioria dos que habitam as ruas estejam integrados nesses programas.
O fato de estarem quase sempre sujos e mal vestidos, muitos em evidente estado de desorganização psíquica, fazem com que o contato social com as outras pessoas seja precário, pois tendemos a evitar aquilo que nos causa repugnância ou confusão, mesmo que esse “aquilo” seja um outro ser humano.
Recentemente vi na televisão uma notícia que referia-se a ações do Papa Francisco, que tinha montado lavanderias públicas em Roma, nas proximidades do Vaticano, fornecendo sabão em pó e maquinas de lavar para o uso dos moradores de rua, que a cada dia crescia mais na capital italiana. Alguns usuários desses serviços referiam-se às motivações que levaram essas pessoas para as ruas, sendo referido principalmente o desemprego e a impossibilidade de arcar com custos de aluguel. Muitos diziam que na possibilidade de ter roupas limpas e cheirosas uma forma de resgatar a dignidade perdida em função da condição em que se encontravam, como moradores de rua.
A diferença desse público a que especifico, dos moradores de rua de Roma, dos que me refiro, na cidade de Salvador, é a aparente manutenção da integridade mental desses indivíduos, que, mesmo deprimidos pela condição social em que se encontram em função do desemprego, ainda mantinham uma consciência de autocuidado expresso pela preocupação com a aparência e com os hábitos de higiene. Mesmo que à margem da sociedade de consumo, desprovidos de renda e de trabalho, ainda se mantinham integrados à sociedade, via consciência da realidade socialmente partilhada. Não duvido que muitos tivessem algum tipo de adoecimento mental, ou depressão, ou alcoolismo, comuns a pessoas em situações extremas de pobreza, porém ainda partilhavam de um senso de pertencimento social.
Mas e os moradores de rua dependentes químicos e portadores de transtornos mentais graves? Muitas vezes o estado de desorganização psíquica, seja pelo uso abusivo de álcool e drogas, seja pela fome extrema ou pela ausência de acompanhamento médico e terapêutico para quadros de surto psicótico, mantem essas pessoas extremamente alienadas de si e do convívio social. Qual a atenção dada a essas pessoas, e quais ações são empreendidas para garantir o mínimo de dignidade a elas?
Obviamente que a resposta não é simples, assim como a questão não é atual. Sempre houve situações como essas, seja nas pequenas, médias e grandes cidades. A diferença é que, nas grandes cidades a possibilidade de essas pessoas caírem no absoluto esquecimento social é maior, passando a figurar apenas como mais um elemento na paisagem cinzenta das cidades.
Em cidades pequenas, onde ainda há um pouco mais de sentimento de solidariedade, e as pessoas portadoras de transtornos mentais graves ainda tem uma referencia de parentesco, a própria comunidade cuida e zelam por essas pessoas. Tornam-se figuras quase folclóricas, o “maluco da cidade”, que integra a dinâmica da vida comum. Nos grandes centros urbanos, no entanto, onde as relações tendem a ser cada vez mais impessoais e o sentimento de solidariedade cada vez mais raro de se encontrar nos gestos cotidianos, essas pessoas estão quase sempre fadadas ao anonimato, à ausência de referências, sem identidade e sem história.
Vez por outra me recordo da Mulher de Roxo, uma figura mitológica das ruas do centro da cidade de Salvador, que transitava vestida de roxo, com trajes que lembravam uma freira, ou vestida de noiva, ou com uma coroa na cabeça. Isso nos idos das décadas de 50 a 70... Não cheguei a conhecê-la, mas tornou-se uma personalidade na memoria do soteropolitano.
Observando os moradores das ruas por onde trânsito, de Itapuã ao Centro Histórico de Salvador, reconheço algumas dessas personalidades, desses tipos atípicos, que transitam e habitam as ruas, carregando uma história desconhecida. São quase sempre pessoas idosas, com os rostos marcados pelo tempo e pela miséria, cabelos brancos desgrenhados, envoltos nos mesmos farrapos, camadas sob camadas de roupas sujas, carregando trouxas de roupas sujas, garrafas plásticas com água, folhas de papelão ou lençóis amarrotados. Embora muitos, anônimos, certamente são facilmente reconhecidos pelos moradores e transeuntes da cidade, já habituados a suas existências compondo o cenário caótico da nossa metrópole baiana.
O que me chama a atenção, mais do que toda a questão social que se faz gritante ante nossos olhos que buscam uma fuga na indiferença, é que, apesar da condição de extrema miséria e loucura, da ausência de história ou identidade, no anonimato e na marginalidade, esses seres humanos são seres singulares. Dotados de uma liberdade plena, de ir e vir, de transitar por todos os cantos e habitar todas as praças, avenidas, ruas e marquises, essas pessoas são singulares em sua existência.
Mesmo que condenadas à indigência, mesmo sendo um “resto” que não se insere nas lógicas de produção e consumo, relegadas à mendicância e à coleta dos restos no lixo, elas não são destituídas de um lugar no mundo. Um lugar, obviamente, à margem, mas no centro do coração da cidade. Suas existências perduram anos a fio, convivendo com os outros habitantes das cidades, trabalhadores ou residentes dos bairros dos centros e periferias, e, certamente, não passam despercebidos pelos olhos atentos de quem busca compreender o humano em todas as suas formas de ser e existir no mundo.
Não creio que seja possível a plena reinserção dessas pessoas ao convívio social, sem que com isso lhes seja tirada a liberdade de ir e vir. Certamente o enclausuramento em manicômios não lhes garante a dignidade, como se fazia nos tempos dos grandes hospitais psiquiátricos. Nem muito menos acredito que o governo esteja preocupado, de fato, em trazer essas pessoas de volta à condição de cidadania.
Certamente muitas ações poderiam e podem ser feitas para trazer um pouco de dignidade a essas pessoas relegadas à condição de indigência. Independente das motivações que levaram essas pessoas a hoje estarem nas ruas, as ruas, enquanto espaço público, é ainda assim, uma casa e uma morada do humano. A grande questão que fica é: que humano?
Creio que só com um olhar sensível é possível romper o silencio e o anonimato desses habitantes das ruas, para responder a essência dessa pergunta. Tudo começa com um olhar, para, a partir daí, vir um gesto. Através do olhar reconhecemos no outro sua existência no mundo, e, através do olhar é possível estabelecer um contato genuinamente humano. Só é possível conhecer o humano vendo, no humano, sua humanidade, mesmo quando ela se encontra ofuscada pela miséria, pela indigência e pela loucura.