Um pouco de Maquiavel não faz mal a ninguém
- Equipe Soteroprosa
- 8 de out. de 2017
- 5 min de leitura

Retrato de Nicolau Maquiavel por Santi di Tito
Dos grandes pensadores que a história nos legou, desde os gregos até os dias de hoje, talvez não haja um autor tão mal falado – e por que não dizer maldito – do que Nicolau Maquiavel. Até mesmo quem sequer leu O Príncipe, utiliza o termo “maquiavélico”, quase sempre para tratar de forma pejorativa alguém, evidenciando a ardilosidade e engenhosidade postas a serviço de algum malfeito, afinal, está na boca do povo, quer queiram, quer não. Assim, o maquiavélico antes de tudo seria o mal encarnado.
Já os que leram O Príncipe, mas que provavelmente não fizeram uma leitura cuidadosa (quando não, maldosa), a acusam de ser o manual dos tiranos. Ouvi certa vez que ele era o livro de cabeceira do velho ACM. Bem, se de fato isso é verdade, então ao menos o velho “cabeça branca” tinha bom gosto. Se ele seguiu ou não os conselhos do ilustre florentino, aí é outra história... mas no momento, o que gostaria de fazer é retirar Maquiavel do pântano da maledicência infrutífera e fazer uma espécie de convite para conhecer o que esse pensador controverso e ao mesmo tempo inescapável na teoria política tem a nos dizer. Com a injustiça e impossibilidade de versar sobre todos os temas abordados n’O Príncipe, escolhi três assuntos que justificam conhecer Maquiavel.
Antes de mais nada, é preciso ter em mente é que O Príncipe se distingue das demais obras de sua época, justamente pela originalidade. Em uma Itália fortemente ancorada na fé católica, em que esses preceitos muitas vezes entravam como guia das discussões políticas e ações de guerra, Maquiavel teria sido um dos primeiros a ir além da separação entre moral e política e esse é o primeiro assunto: para o florentino, não havia necessidade de separa-las, porque nunca andaram juntas. Ele rasga o véu da moralidade que, estranha à política, encobriam as ações dos governantes.
Mais do que isso, a política tinha uma moral própria e essa era uma das lições importantes que ele nos deixou. E nem preciso ir muito longe para encontrar um exemplo dessa afirmativa, basta lembrar o abraço carinhoso que Lula deu em Paulo Maluf, que recebeu o líder petista em sua própria casa como sinal de apoio à candidatura de Fernando Haddad. Para os tomatinhos empedernidos pode até ter dado urticária, mas a política tem uma lógica própria e não é feita por aqueles que tem o fígado no lugar do cérebro.
“Os fins justificam os meios”, teria dito Maquiavel, certo? Errado. Desafio a qualquer um a procurar essa passagem no seu escrito. Ainda que tenha guarde uma semelhança remota com alguns argumentos maquiavelianos, tal frase me parece esconder um tipo de retórica do vale-tudo, que cabe perfeitamente na boca e no discurso daqueles que sem qualquer tipo de escrúpulos, lançam dos meios mais abjetos para atingir o seu objetivo. Falar da justificação dos fins pelos meios, transformando tal frase em uma máxima mequetrefe, é prestar elogio ao uso da força sem limites e não era isso que Maquiavel defendia. O grande legado do estadista era a manutenção da ordem, ordem essa que só viria com a criação de instituições sobrevivessem ao tempo e as vicissitudes das paixões humanas e é esse o segundo assunto.
Sim, Maquiavel buscava a ordem. Mas antes que os primeiros detratores o tomem como um “reaça”, é preciso entender em que contexto ele se situava. Na península itálica onde vivia, o que existia era uma miríade de cidades-estados em guerras umas com as outras, território à mercê de nações estrangeiras, como ocorreu nas invasões de França e Espanha. Contra esse caos que Maquiavel se insurgiu, exortando para que um príncipe tomasse para si a tarefa de unificar a Itália, afastando as dissenções e criando um país forte o suficiente para se defender das ameaças de nações inimigas. Maquiavel era antes de tudo, um patriota, que punha os interesses de sua cidade amada, Florença, e da Itália como objetivos acima de interesses pessoais. Essa era o tipo de tarefa que um príncipe deveria se dispor a cumprir.
Outro assunto importante é a crítica à tradição. Em sua distinção entre os principados novos e antigos, esses últimos, a priori, seriam os mais fáceis de governar, pois bastaria para o príncipe o peso dos costumes sobre os governados. Porém, uma leitura mais atenta nos mostra que até mesmo nesses principados, o governante não pode simplesmente se valer do peso da tradição e achar que seu governo está a salvo. Pelo contrário, Maquiavel nos mostra que todo governante deve ter em mente que está em mundo povoado por outras forças, as quais ele não tem o domínio, mas que ao mesmo tempo ele precisa se relacionar, precaver e buscar sempre se antecipar aos seus efeitos.
A Fortuna, deusa do acaso e personificação da contingência da vida, a qual não podemos evitar, mas podemos nos precaver frente às incertezas, utilizando assim a Virtú, qualidade necessária para atrair os favores dessa deusa caprichosa. Nesse sentido, Maquiavel nos convida para o entendimento do campo da política como em um sentido aberto, onde ação humana é fator importante para a consecução dos objetivos, mas que se sustentam na precariedade, justamente porque a própria lógica conflituosa, imanente à política, não permite que “se baixe a guarda”, confiando no que já foi conquistado. Assim, a política toma contornos de uma obra a ser construída, do qual o seu artífice nunca pode ter certeza que chegou ao fim, ao mesmo tempo em que deve cuidar para o que foi construído não venha a ruir por imprudência.
Em tempos onde o ódio e o ressentimento parecem ter reduzido as divergências em uma guerra entre guelfos e gibelinos[1], onde a própria classe política não consegue – até o momento – apresentar propostas claras de mudança do quadro que aí está, nunca é demais retornar aos ensinamentos dos grandes, assim como Maquiavel. E para aqueles que acham que O Príncipe é apenas um livro endereçado aos governantes, ele também pode (e deve) ser lido como uma obra endereçada a todos que querem ter uma contribuição da política como ela é, não como deveria ser.
A recuperação da política como algo constitutivo da ação humana, em detrimento da violência que deseja ver corpos de criminosos e políticos sangrando em praça pública, além do ressentimento e medo que nos fazem acreditar em salvadores da pátria, novos profetas que prometem defender a família brasileira enquanto saúdam a torturadores, é uma das lições do “Old Nick” que não devem ser esquecidas, sobretudo em momentos como o que vivemos. Dessa forma, sigamos todos o conselho do sociólogo Luiz Werneck Vianna e vamos todos tirar Maquiavel do armário – e também das gavetas.
[1] Como eram conhecidas as facções políticas que estiveram em luta na Itália, divididos entre os partidários do papado e os partidários do Sacro Império Romano-Germânico.