Hannah Arendt em “Vita Activa,” documentário produzido pela Zeitgeist Films. Arquivo: New York Times.
Antes de mais nada, eu não poderia deixar de confessar o quanto esperei para publicar este artigo. No dia em que Hannah Arendt completaria 111 anos, escrever sobre ela é um prazer, afinal quem me conhece sabe o quanto sou tributário de seu pensamento, mas ao mesmo tempo um problema danado. Ter a responsabilidade de – pela primeira vez – escrever diretamente sobre uma autora, a qual me dei a licenciosidade de chamar pelo primeiro nome, põe sobre minhas costas um peso tão grande quanto o que Atlas foi obrigado a carregar. No entanto, ciente do que significa essa tarefa, espero cumpri-la sem vergar perante o seu peso.
No dia 28 de outubro de 1964, em entrevista ao jornalista alemão Günter Gauss, quando perguntada pelo mesmo qual a impressão sobre o seu papel no círculo de filósofos – para que falasse sobre a importância de ser a única mulher no “panteão” –, a ilustre entrevistada respondeu de bate-pronto “bem, temo em começar protestando, eu não pertenço ao círculo dos filósofos. [...] não me sinto de modo algum, uma filósofa.”. E logo mais à frente arremata “essa é uma típica pergunta masculina. ”, para desconcerto de Gauss. Se tal exercício for possível, podemos resumir assim Hannah Arendt: desconcertante.
De todos os pensadores que tive a oportunidade de ter contato, ela reúne duas características que a tornam não penas interessante, mas também única: além de das ideias mais desconcertantes (que me desculpem os leitores de Nietzsche), se constitui uma tarefa hercúlea tentar “encaixota-la” em alguma corrente da filosofia. E essa capacidade de causar desconcerto, que também marcou sua personalidade, estava presente desde o seu primeiro livro. Em Origens do totalitarismo, de 1951, ela deixou o Ocidente perplexo ao dissecar as estranhas dos regimes nazista e stalinista, como também, com incomum propriedade e eloquência, apontou quais os elementos que contribuíram para que “o abismo se abrisse diante de nós”.
Embora os dedos tenham “coçado” para falar sobre as reflexões dessa obra – ou das demais[1] –, a provocação que eu gostaria de propor, no sentido de que ela desperte o interesse naqueles que não a conhecem ou reavivar o interesse pela leitura, é pensar se para além das reflexões que a fizeram uma referência obrigatória para entender o século XX, o que mais a velha Hannah tem a nos ensinar? Bem, talvez o desafio proposto por mim mesmo possa não convencer os leitores mais incrédulos, porém, penso que vale a pena o tal exercício reflexivo.
Arendt era judia de origem alemã e viveu o período imediatamente anterior a ascensão do nazismo, chegando inclusive a ter de fugir para a França, o mesmo país que enche a boca para cantar a La Marseillaise[2], mas que chegou a ser presa em um campo de concentração em território próprio. Anos mais tarde, ela acompanhou o “julgamento” de Adolf Eichmann em Jerusalém, considerado como um dos carrascos do nazismo. Imagine a surpresa, especialmente na comunidade judaica, quando a Hannah afirmou que o tal carrasco não passava de um imbecil qualquer, um tipo medíocre encontrado em qualquer repartição pública? Mais do que isso, ela afirma com todas as letras: a efetividade do holocausto se devia em parte pela colaboração das comunidades judaicas. Isso mesmo. Sem ajuda dos condenados, os algozes teriam muito mais dificuldade em executar seu plano sinistro. Bem, não vou argumentar o porquê a Hannah chegou a tais conclusões, justamente atiçar a curiosidade da leitura.
Outro ponto que merece destaque é a crítica enfática de Hannah sobre a emergência da “questão social” no debate político. Faça o seguinte raciocínio: imagine alguém defender abertamente que, problemas como pobreza e miséria, não deveriam ser assuntos políticos por excelência? Eu não nem preciso pedir que você, meu caro leitor, tenha a necessidade de pensar nas condições de miséria em que vive tanta gente no mundo, basta que você pense no seu bairro, ou no caminho que faz para a escola, faculdade, trabalho... como é possível pensar que resolver a desigualdade socioeconômica abissal que existe em nossa cidade, não seria tarefa da política, ou mesmo assunto de debate?
Bem, explicar tal argumento me levaria a escrever bastante (e todos notaram o quanto eu gosto de escrever), porém correndo o risco de ser por demais sintético, tentarei explicar. No entanto, peço que não repitam o gesto grosseiro de taxa-la como uma liberal, ela foi tudo, menos isso. Estudiosa da revolução francesa e também do fenômeno totalitário, Hannah alertava para que, se a questão social se tornasse tarefa da política, havia o risco de que esse assunto hegemonizasse as preocupações políticas e valores como a liberdade pudessem ser sacrificados, em nome da segurança e da necessidade. Afinal o espaço de decisão política tiver como norte a “questão social”, até mesmo um governo autoritário poderia fazê-lo. Não obstante, enquanto Hitler punha manteiga nas casas alemãs, ninguém ligou para onde levaram os seus vizinhos judeus.
Para além da capacidade de nos fazer refletir sobre tais problemas, e essa é a virtude que todo pensador deve ter – não a de criar igrejas –, a partir desses dois casos que eu citei, é possível perceber um aspecto que acompanha o pensamento arendtiano e que para mim, se constitui como um valor nele mesmo: a coragem de agir. Partindo do pressuposto que a ação também pode ocorrer pela palavra – afinal, não foi por meio da palavra que Jesus ordenou que Lázaro saísse do sepulcro? –, Hannah não se furtou a participar dos debates de sua época, muitas vezes como voz dissonante. Uma judia, com menos de 20 anos do Holocausto, afirmando que judeus agiram como cúmplices dos nazistas, não era qualquer coisa. Mesmo com uma hostilidade terrível da comunidade hebraica, Hannah não recuou um milímetro de seu argumento.
Da mesma forma, foi com extrema coragem com que ela defendeu a “questão social” não capturasse o debate político fazendo dele o seu refém e objetivo principal, em detrimento de outros valores. Não era simplesmente para ser “do contra”, era algo maior. Um dos maiores legados arendtianos é coragem de propor uma reflexão, sob um ponto de vista que não seja contaminado pelo que é “consenso”, ou o que a maioria pensa. Chamar a atenção para um fato que, diante do sofrimento dos judeus, provavelmente passaria batido, mas que era fundamental para tentar compreender o que foi aquele horror vivido. Para Hannah, omitir era o mesmo que consentir, atitude que não estava em seu caráter.
Hoje, nós nos vemos soterrados por essa crise da política, por uma onda de violência que mais parece um monstro insaciável a dragar vidas humanas, além dos problemas crônicos de nosso mundo, que deixa a cada dia mais pesado o fardo do nosso tempo. E justamente a política, ferramenta tão defendida para a mudança, ou parece um odre apodrecido, pronto a transformar qualquer vinho que nele entre, no mais azedo vinagre, ou nos parece menos convidativa do que nosso “#sextou”, nossa praia, ou mesmo o nosso seguro para celular contra furto e roubo. Em momentos assim, tão propícios para soluções messiânicas que nos devolvam a segurança e a tranquilidade, ou a cômoda vida privada, pedem muito mais do que a simples resignação. Exige a coragem para que paremos para pensar no que estamos fazendo e para onde estamos deixando nos levar. Atributo que não faltou à velha Hannah.
[1] As obras utilizadas para este artigo foram: As Origens do totalitarismo, A Condição humana, Da Revolução, Entre o passado e futuro (para alguns especialistas, o livro que melhor permite ter uma noção geral da autora)
[2] Hino nacional da francês, composto em 1972, famoso por seus versos de entusiasmo para a batalha, sendo muito utilizado durante a revolução francesa.