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O corpo mal cheiroso do intelectual: a vaidade disfarçada em virtude

Foto do escritor: Thiago Araujo PinhoThiago Araujo Pinho


A vaidade não é um monstro terrível, com olhos verdes e dentes afiados, algum tipo de aberração fácil de ser nomeada, apesar do que dizem por aí. Assim como o poder em Foucault, a vaidade carrega traços convenientes, quase pragmáticos, fazendo da sua presença algo constante, e não um simples desvio de caráter, um detalhe pontual. A vaidade, como areia de praia na mão, é um tipo substância que escorre por todo lado, sendo impossível conter seus contornos.


No universo das humanidades, convenhamos, a matéria, o concreto, o sensível, são coisas meio que escassas. Dinheiro, imóveis, carros, e outros, não participam tanto assim do nosso repertório, não é bem o que aparece em nossas narrativas, em nossas justificações. Embora essa mesma materialidade não seja tão presente, continua existindo algo de valor no horizonte, algo que todos buscam preservar a qualquer custo, de preferência longe dos dedos sujos da multidão, da massa. A popularidade das coisas contamina sua essência intocada, assim como os Sofistas, para Sócrates, comprometiam o conhecimento legitimo com sua retórica agradável e popular. O critério platônico era claro: se uma coisa é aplaudida pela maioria, acolhida pela multidão, algo de bom não é. Peço paciência ao leitor, porque esse tipo de vaidade é bem sutil, oculto, e por isso mesmo eficaz. Essa vaidade se encontra nas camadas mais inferiores da linguagem, com certeza não em sua superfície, em sua aparência. É preciso um pouco de genealogia para alcançar esse núcleo mal cheiroso, tirando aquela mascara conveniente que todos usam, o tempo todo. É preciso chegar nas associações livres, saindo da conveniência e da fantasia, chegando finalmente no sótão de Dorian Gray.


Vamos aos exemplos... Figuras em nosso meio, que por algum motivo se tornaram populares, quase celebridades, tem seus argumentos constantemente subestimados, como se houvesse apenas retorica esvaziada, em detrimento da essência de uma verdade perdida. Leandro Karnal, Luíz Felipe Pondé, Mario Sergio Cortela, Clóvis de Barros Filho, Vladimir Safatle, e tantos outros nomes são constantemente criticados dentro do nosso ambiente universitário. O motivo não pode ser a posição política, claro, até porque não existe entre eles nada de homogêneo, a não ser um espectro que oscila da esquerda para a direita e vice e versa. O ódio intelectual direcionado a essas figuras, portanto, brota de outro lugar, mas de onde? O que incomoda o acadêmico sitiado, aquele dos projetos de pesquisa, das salas de aula e dos congressos pontuais?


Mesmo depois de 2000 anos, parece que ainda sofremos da síndrome platônica, aquela vaidade epistemológica que desconfia de um simples argumento popular, um tipo de resistência estranha a toda proposição que é acolhida pelo senso comum. Como um pesquisador que trabalha com estética, sei muito bem os contornos do meu próprio campo: Quem em sã consciência trocaria Kafka por Paulo Coelho, o “Castelo” pelo “Alquimista”? Absurdo, completa insanidade!!! Quem citaria Michael Bay no meio de um comentário numa sala de aula? Prefiro Hitchcock, Fellini, De Sica, Lars Von trier, diretores especiais, melhores, figuras que passam a quilômetros de distância das salas de cinema do Shopping da Bahia. A escassez parece conferir valor à coisa, da mesma forma que um diamante não vale o mesmo que um pedaço de vidro, ou uma pérola não vale o mesmo que um pedaço de concreto.


Apesar do espirito crítico, questionador, além da resistência a qualquer modelo aristocrático, as humanas ainda preservam um tipo de vaidade de fundo, principalmente uma pretensão platónica, um tipo de ar de superioridade frente aos deslizes do senso comum e sua suposta ignorância sobre o Belo, o Verdadeiro e o Justo. Por que essa vaidade não é evidente como as outras, por que passa despercebida? A vaidade, enquanto coisa externa, atribuída a um outro, assim como o poder negativo em Foucault, é sempre algo em destaque, explícito. Por outro lado, a vaidade, enquanto algo imanente, da minha própria experiência, assim como o poder positivo foucaultiano, é sempre algo sutil, imperceptível, quase como uma ferramenta prática incorporada em meu próprio corpo e em minha própria linguagem. Ou seja, existem dois tipos de vaidade no meio acadêmico: a conveniente e a inconveniente. A segunda sempre vem de fora, grosseira. Já a outra, ao contrário, é um traço fenomenológico, uma constante na experiência, sendo uma espécie de suporte que estrutura nossa própria percepção no mundo.


A estrutura dualista de linguagem, no universo acadêmico, principalmente aquela que separa ciência e senso comum, não é apenas um detalhe epistemológico, como pensava Bachelard. Existe uma vaidade de fundo que sustenta os encontros, sendo algo sensível, corporal, coisa de carne e não apenas de razão. Para além das proposições e dos silogismos, para além da própria atmosfera analítica e distanciada da lógica, o corpo é uma constante, elemento insistente, quase como uma sombra que nos acompanha a cada passo. Não sou apenas um Cogito, coisa pensante, auto-suficiente e pretensiosa. Acima de tudo, sou uma criatura lançada no mundo, presa em suas articulações, sendo a vaidade uma companheira inescapável, ainda que inconveniente. Existe no universo acadêmico uma vontade de verdade, como dizia Nietzsche, ou seja, a verdade enquanto algo fisiológico, corporal, e não apenas proposições se encadeando dentro de alguma cabeça.


A vaidade é esse traço de corpo, esse rastro no interior da epistemologia, essa mancha na estrutura das proposições. Seu problema, portanto, não é um simples desvio de caráter, um deslize realizado por alguns. Como é possível perceber, estamos diante de um problema mais profundo, um problema que nos lança direto nas profundezas do corpo e da linguagem.

Autor: Thiago Pinho. Doutorando do curso de Ciências Sociais (UFBA).

Email: pinho.thiago@hotmail.com

Fonte da imagem:

https://graysonwillis.deviantart.com/art/The-Picture-Of-Dorian-Gray-323316725

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