Entendi, isso é o que você quer, mas o que você deseja??!!!: a linguagem e suas infinitas camadas

A linguagem tem muitas funções, muitos níveis de sentido, para além da simples e ingênua descrição, apesar do que dizem por aí. Uma frase não é apenas uma janela inocente, uma ponte entre o falante e o falado, entre o sujeito e o seu mundo. Por trás de sua capacidade descritiva, de mera indicação, um fluxo intenso de sentido corta as palavras, atravessando sua natureza aparentemente simples e comunicativa.
Quando eu te pergunto, no meio de uma sala de aula, “você pode alcançar aquele livro?”, o que você faz? Provavelmente me entrega o livro. Mas, pense um pouco, por que isso acontece? Eu não pedi que me entregasse nada. A pergunta é clara: VOCÊ PODE ALCANÇAR AQUELE LIVRO? Para um cínico, literal, a melhor resposta seria “sim, posso alcançar”. O problema é que essa resposta é insuficiente, já que a frase carrega um pedido implícito, um sentido implícito. Parece que existe no interior da linguagem, como diria Austin, vários níveis de significação, várias modalidades que não se reduzem a um papel meramente descritivo. Embora não seja evidente, o cotidiano é povoado de situações dessa ordem, como numa conversa com um amigo ou assistindo um programa de tv. As palavras brotam, se articulam, e nos afetam de um jeito disperso, em níveis. Ou seja, uma simples frase, imagem, ou qualquer material semiótico, sempre carrega dentro de si um potencial incrível, múltiplo, captado instantaneamente pelo ouvinte ou espectador.
Vamos agora rumo a um exemplo concreto e muito familiar: o facebook. Esse é o espaço ideal quando o assunto é perceber essa característica dinâmica do signo. Assim como na linguagem falada, no cotidiano, muitos interpretam a postagem como uma mera descrição de um acontecimento, como se o falante pretendesse apenas descrever algo da sua vida ou da vida de alguém. Será mesmo? Vamos analisar um pouco três situações hipotéticas, ou nem tanto assim, ao mergulhar de cabeça nesse universo de linguagem, observando principalmente o seu uso cotidiano.
1) Carla posta uma foto sua em paris.
2) Fabio posta uma citação da fenomenologia do espirito de Hegel.
3) Leticia publica uma foto do seu diploma de doutorado.
Um olhar ingênuo sobre esse cenário nos levaria a seguinte conclusão:
1) Carla descreve uma viagem feita.
2) Fabio descreve uma citação lida.
3) Leticia descreve um diploma obtido.
Existem aqui três pessoas apenas descrevendo coisas, feitos, compartilhando inocentemente informações, certo? Talvez não, ou talvez não apenas isso. A linguagem é atravessada por vários níveis de sentido, principalmente camadas ocultas, camadas que envolvem traços desagradáveis. Na psicanálise, existe uma distinção curiosa, uma que poderia nos ajudar nesse momento: Existem coisas que eu QUERO e coisas que DESEJO. As coisas que QUERO estão dentro de uma narrativa explícita, conveniente (“quero apenas descrever algo sobre mim, quero apenas compartilhar alguma coisa”). Já as coisas que DESEJO, por outro lado, nos lança ao inconsciente, a um solo desagradável, a um terreno distante da superfície, a não ser em um divã (“quero alimentar minha vaidade, quero me sentir superior, quero aprovação alheia”).
Voltando agora aos três exemplos, vamos lançar um pouco de genealogia sobre eles: O que Carla, Fabio e Leticia QUEREM, isso é óbvio, é explicito, conveniente, direto. O “querer” mobiliza um sentido compartilhado, de fácil compreensão. Mas e o que desejam? Como alcançar esse núcleo de sentido oculto, oculto até mesmo dos próprios falantes? Em uma sessão de psicanalise, claro, nada disso seria um problema. Bastava um pouco de talking cure e pronto... associações livres por todo o lado!!! Sem sofá, divã, ou qualquer coisa do tipo, nos resta a velha e eficaz genealogia.
Vamos pegar um exemplo apenas, dissecando sua estrutura interna. Fabio, ao “descrever” uma passagem da fenomenologia do espirito, traz consigo diversos níveis de significação, camadas de sentido, especialmente camadas obscuras, camadas que envolvem o desejo e não o querer. Por trás desse potencial descritivo, e inocente, podemos notar uma linguagem oculta, uma linguagem que sugere outras informações, como:
1) Sou sofisticado.
2) Consigo ler coisas difíceis.
3) Não sou como a maioria.
4) Prestem atenção em mim!!!
5) Tem orgulho de mim agora mãe? (rs).
E assim por diante...
A linguagem, portanto, não é algo simples, linear, mas carrega um universo inteiro dentro de si. Por isso, leitor, não se engane com as palavras, porque elas são cheias de armadilha. E lembre-se, já sei muito bem o que você quer, é óbvio, mas o que você deseja?
Autor: Thiago Pinho