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O filme "Cidade de Deus" e a intervenção militar no Rio de Janeiro: qual a relação?


Gostaria de começar esse artigo falando um pouco do filme “Cidade de Deus”, que mostra o cotidiano de um bairro do Rio de Janeiro desde que foi criado. O longa é uma adaptação do livro homônimo escrito por Paulo Lins sobre a vida na favela, lançado em 1997.


O filme acompanha o desenvolvimento aleatório da comunidade criada durante a administração do então governador Carlos Lacerda, que recebeu moradores advindos de várias favelas removidas de diversas áreas da cidade. De maneira cronológica, a história vai mostrando por meio de seus personagens o crescimento da criminalidade em suas diversas formas. Desde o “Trio Ternura” até a formação das primeiras organizações criminosas que viriam a gerenciar o tráfico de drogas em toda a cidade.


Nota-se nas primeiras cenas a presença de forças policiais no território – o que demonstra uma das poucas preocupações do Estado nesses locais: garantir o controle e vigilância dos seus habitantes por meio da presença de guarnições. Por meio de um narrador-personagem, a favela vai crescendo desordenadamente e sendo dominada por marginais que pouco a pouco orientam o dia-a-dia de uma população abandonada ao Deus dará, esquecidas que foram pelo poder público. Logo, grupos rivais passam a disputar o controle do local, amealhando novos integrantes que vão adentrando cada vez mais naquele ambiente inóspito de acordo com ocorrências que os impelem a escolher um lado, abarcados pelo clima constante de domínio e, sem alternativas para resolver seus conflitos comunitários por vias legais, solicitando auxilio dos chefes de gangues que disponibilizavam armas ou resolviam a situação, culminando no aumento do bando. Não raro, jovens, ainda na infância, alimentavam as quadrilhas.


Utilizo esse filme como uma justificativa plausível na tentativa de analisar o clima de insegurança que impera no país. Com a notícia de uma intervenção militar para gerenciar as políticas de ação na segurança pública no município do Rio de Janeiro, vislumbra-se uma ação imediata e emergencial com o intuito de controlar os índices alarmantes da atuação de facções criminosas nas ruas da cidade. Porém, muitos questionamentos podem ser feitos por conta dessa iniciativa. E aí que o link com o longa-metragem mencionado se torna necessário.


A película retrata bem como o tráfico de drogas perpetuou um clima de confronto entre grupos antagônicos (como o bando de “Zé Pequeno” e o de “Cebola”) que até o final permaneceu dentro da Cidade de Deus. Nota-se que enquanto estava concentrado naquele perímetro, pouca importância se deu para a resolução da contenda. Nos anos subsequentes, extrapolou as fronteiras da comunidade, chamando atenção da imprensa. Enquanto os habitantes do bairro sofriam as agruras do crime que estava se organizando, a comunidade era invisível. Somente quando transbordou sua agonia, passou a ser visibilizada, observando que muitos jovens nem tinham a opção de não se envolver com as gangues. Eram tragados pela realidade a sua volta, sem alternativas de escapar àquele destino, visto que a sociedade distante não os incluía. Poucos escaparam desse viés. O incômodo só foi sentido, porém, quando atingiu regiões resguardadas da vida cruel dos morros.


O atual plano de intervenção mostra outro paradoxo. Enquanto aclamado como algo essencial para amenizar o clima hostil na cidade, a interferência de forças militares na rua reforça o apoio de parte da população a uma intervenção militar completa – uma súplica de um segmento da população durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Porém, o desenvolvimento das facções foi gerido justamente durante o governo militar! O período abrangido pelo filme se passa quando o regime militar já estava consolidado. Mesmo sendo algo incipiente, que só viria ser notado após a redemocratização, os governantes da época não planejaram nenhuma medida estratégica de prevenção, visto que grupos organizados já surgiam no final dos anos 1970, sobretudo em presídios. Segundo registros, o Comando Vermelho teria sido criado na Casa de Detenção Cândido Mendes, na Ilha Grande, em 1979. A cocaína era fonte de renda dos grupos na Cidade de Deus nesse interim. Ou seja: reivindica-se de uma instituição a solução dos problemas, quando esta mesma instituição não teve a percepção, como esfera de poder, para observar o terror que se criava debaixo de suas barbas. Seus entes estavam mais preocupados em conter avanços dos grupos sociais que exigiam o fim do regime. Foram atribuídas aos militares explosões de bombas em diversos locais. A mais famosa, no Rio Centro, em 1981, durante uma celebração ao Dia do Trabalho.


Ainda sobre a repercussão da atual medida, pouco se debate dois quesitos relacionados: o número de armamentos em mãos criminosas e a regulamentação do comércio de drogas. Este último assunto então é constantemente jogado para debaixo do tapete. Evitou-se essa possível discussão legislativa nos últimos anos, enquanto o consumo de drogas permitia um alto rendimento. Muito se fala do fracasso de enfrentamento às drogas, mas o combate via repressão parece que continuará. Quanto ao acesso às armas por parte das facções, evidencia-se o que estudos já demonstraram: não há possibilidade de crescimento de forças do tráfico sem a conivência de agentes do Estado, como atestou a professora Jaqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense. A pergunta é quem vai investigar essa corrupção estatal e informar para a sociedade os meandros da confluência entre Estado e líderes de facções.


O pleito militar atende requisitos de uma camada da população residente em bairros de classe média, atingidos pela violência, em um estado desestruturado financeiramente e com boa parte de seus governantes encarcerados. Por trás dos aplausos à intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro, há um desejo de controle das comunidades mais carentes, para que suas mazelas permaneçam entrincheiradas em suas vielas mal estruturadas e apertadas e assim apaziguar as zonas turísticas e privilegiadas. São soldados mal remunerados que vão estourar pontos de drogas escondidos atrás dos altos muros dos condomínios de luxo?


Por fim, a intervenção deixa claro um ressentimento de classes, muitas vezes manifestada no Rio de Janeiro. Policiais já interceptaram jovens moradores de favelas os impedindo de transitar pelas praias da Zona Sul carioca, sob alegação de estarem sem documentos. Alguns moradores dessa mesma Zona Sul já se armaram com paus e estacas para impedir o desembarque de jovens pobres, oriundos de diversas favelas, em praias da região. Todo um clima de conflitos que movimenta uma cidade, em meio a uma controversa interferência militar, só demonstra que pouco se fez durante décadas para tratar da população de excluídos nas áreas mais carentes das cidades brasileiras – não só no Rio. É só assistir “Cidade de Deus” que veremos todo o descaso de uma nação ao crescimento da criminalidade e o espanto hipócrita de quem viu o grande monstro a se criar.


FONTES:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/traficonorio/faccoes-cv.shtml


https://www.youtube.com/watch?v=v97Z3RKns7E


https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/31/tiroteio-no-rio-bloqueia-transito-na-linha-amarela.htm

https://www.revistaforum.com.br/policia-impede-jovens-da-periferia-de-irem-a-praia-no-rio-de-janeiro/


SCHWARTZ, Lillian; STARLING. Heloísa. Brasil: uma biografia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2015.






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