Cidadão Kane é um daquelas obras clássicas hollywoodianas que conheci a pouquíssimo tempo. Lançado em 1941, por Olson Welles, que foi diretor, produtor, roteirista (ao lado Herman J. Mankiewicz) e ator principal. A película ganhou o prêmio do Oscar de melhor roteiro original, baseado na vida do magnata William Randolph Hearst. Por que assistir a esse raríssimo filme lançado a 77 anos? O leitor curioso nos acompanhará até o fim do ensaio.
Não iremos falar das belíssimas inovações técnicas do filme, sobre direção de arte e fotografia. Nosso olhar é sobre o roteiro e a lição moral que ele passa, pois está além do seu tempo. O magnata da mídia, Charles Foster Kane, é dono de muitos jornais americanos. Homem rico, que pode comprar quase tudo, e que carrega uma característica negativa: o egocentrismo. Sim, nosso protagonista faz tudo em função das suas vaidades e necessidades, afim de preencher seu espírito. Sem dúvida alguma, passou toda vida acreditando no poder do "ter", e na falsa sensação de felicidade.
Kane viaja, compra, seduz e faz com que todos ao seu redor - exceto Leland, o mais próximo de um amigo - acabem por acatar as suas decisões. Mais do que isso: o poder teve a capacidade de atrair quase tudo, menos a sua própria consciência. Durante sua vida, nosso personagem não conseguiu estar consigo mesmo. Ou só raramente.
Nossa protagonista foi arrancado ainda criança de sua família original, e passou a viver no luxo. Não precisava dar duro para valorizar qualquer esforço, pois sempre teve pessoas trabalhando para servi-lo. Pouco se importava com riqueza; queria status, aparência. Mas algo da infância o acompanhou a vida inteira: a simplicidade do lar. Apesar de ser egocêntrico, guardou no seu íntimo uma nostalgia da meninice: brincar com o trenó na neve, numa casa humilde e na companhia dos pais. Essa simplicidade ele não teve mais.
Atrair pessoas e objetos para nunca sentir-se só e tedioso, é um típico problema do indivíduo contemporâneo: ter medo do isolamento. Não suporta a si mesmo. Despreza o silêncio e a quietude. Tal incapacidade de olhar para dentro, escutar sua alma e mergulhar em seu interior, gera uma falta de criatividade, autonomia e autoconhecimento. Além do mais, somos atualmente bombardeados com tantas informações que dificilmente trazemos algo de novo à sociedade. Tudo parece ser uma replicação. Mais do mesmo. Susan Cain, em O Poder dos Quietos, discute a necessidade de longos períodos a sós, visando alcançar novos projetos e ideias. Grandes filósofos e cientistas distanciavam-se da multidão buscando parir teorias. O isolamento faz parte da construção.
A película profetiza, a 74 anos atrás, uma tônica dos nossos dias: a falta de introspecção. Estar sozinho não é abrir mão da sociedade ou ser solitário. Você pode ser solitário mesmo rodeado por muitas pessoas O momento de solitude é a capacidade de encarar a si mesmo. Sentir-se solitário estando só é sinal de fraqueza. Pobreza de alma.
O verdadeiro impulso, na busca de conhecimento e felicidade, vem de dentro. Uma vida não refletida, ou examinada, não vale a pena ser vivida, disse o sábio Sócrates a muitos séculos.
Caros leitores, sem o desejo interior, incapacitado a agir, somos arrastados pelos inconstantes afetos alheios, como esponjas ambulantes. Na solitude é que empreendemos reflexões para além do óbvio. É preciso, às vezes, ser Robinson Crusoé e lidar com nossa ilha. Ou subir ao monte, como nas parábolas bíblicas, para meditar. Se não estivermos realmente dispostos a tais esforços, continuaremos sendo determinados pela cegueira emocional e social. Jamais alcançaremos maestria na extrema passividade das vicissitudes cotidianas!!!
É na velhice tardia que Kane realmente encara a si mesmo, no espelho da alma. No último suspiro! Eis a grande lição.
Até a próxima.
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Link da imagem: http://cultura.estadao.com.br/blogs/luiz-zanin/depois-de-70-anos-cidadao-kane-ainda-e-o-maioral/