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“Café Müller”: Solidão, encontros e desencontros - Um experimento crítico.



"Tudo se tornou rotina e já ninguém sabe porque está a usar certos movimentos. Tudo o que sobra é uma estranha espécie de vaidade que se afasta cada vez mais das pessoas. E eu acho que deveríamos estar cada vez mais perto do outro." Pina Bausch¹.


O espetáculo de dança-teatro Café Müller foi uma realização da coreógrafa, dançarina e diretora da Companhia de Dança-Teatro Wuppertal, Pina Bausch (1940-2009). Teve sua estreia no dia 20 de maio de 1978 na Ópera de Wuppertal, cidade da Alemanha. Três bailarinos e três bailarinas, entre elas a própria Bausch, integram a coreografia que acontece numa espécie de café com mesas e cadeiras vazias espalhadas. Projetado pelo cenógrafo e figurinista Rolf Borzik, o espaço remete a uma cantina de um hospital psiquiátrico. A música de Henry Purcell, que sai de alto-falantes, toma conta do espaço.


Conheci o registro audiovisual da obra em 2001 quando ainda era aluno da graduação do curso de direção teatral da UFBA, a partir da experiência das aulas na Escola de Dança. Ainda me recordo das impressões suscitadas: um misto de inquietação, impulso pelo desejo de criar a partir do movimento, identificação e estranhamento. Eu fui fisgado pela estética intensa e catártica do espetáculo e posteriormente por outras obras da coreógrafa alemã. Certamente foi um momento tocante que me inspirou, me estimulou e passou a fazer parte da minha formação enquanto artista.


Em cena, o pequeno grupo de dançarinos nos instiga a observar movimentos intermitentes e repetitivos, ora bruscos e violentos, ora apáticos, enquanto uma mulher que pode ser uma visitante, corre ruidosamente com sapatos de salto alto. Há uma excitação emanada da energia contida dos corpos, a utilização primorosa do espaço, o uso de sobreposição cinematográfica e fluxo de imagens. A interação entre dançarinos e dançarinas nos convida a refletir sobre rotina, encontros e desencontros, a escassez do contato profundo e o medo da solidão.


Compartilho abaixo as impressões que tive sobre Café Müller, a partir de uma experiência, resultado do workshop de crítica cultural ministrado por Daniel Guerra e Igor de Albuquerque no II Festival Estudantil de Artes Cênicas (2017). Eu pude experimentar outras formas de exploração criativa da escrita crítica. O que segue foi um dos exercícios propostos na oficina. O resultado revela a possibilidade de poder expandir nosso potencial criativo dentro de um texto crítico a partir da liberdade de escrita. Sugiro o duplo exercício de ler o texto e ver a obra, ou vice-versa, para melhor fruição.


“Na cidade nua |o café vazio| submerge na penumbra.

Há cadeiras, mesas. Cadeiras e mesas. Há cadeiramesas desordenadas no caos. Caosss completamente árido e despovoado, onde o silêncio e a solidão reinam.

De súbito, tateando as paredes cinzentas, ela titubeia contida.

A outra em constante movimento rumo ao desconhecido, dá volteios na escuridão. Se desprende e se esbarra.

Ele a protege.

Ela e seu duplo, no fluxo cadenciado, se projeta no espaço e, desbrava os limites do instante numa relação solene de embalo sonoro, trágico e intenso-profundo.

O moço gentilmente segue a rearranjar o espaço como num preâmbulo amoroso para o reencontro ad infinitum.

Ela se aventura no vácuo.

No

encontro

moldam-se

movimentos.


Eles se encontram todos os dias, no mesmo lugar, na mesma hora.

Eles se encontram, todos os dias, no mesmo lugar, na mesma hora.

Eles, se encontram todos os dias no mesmo lugar na mesma hora

Eles se encontram...

Marionetes do desejo.

Ele quer partir. Ela, perdida, atravessa o real e com pressa, não flui a vida.

Ele pede o café para dois.

As portas do tempo giram vertiginosamente e corroem, corroem, corroem...

Dor e solidão.

Corpos moventes fluem, volitam, extenuam-se em espasmos profundos no cumprimento do dever cotidiano. São tormentos em tempos de sonhos.

Respiram num átimo o princípio do prazer.

Provocam, atiçam, insistem e suportam [a vã tentativa de serem imortais].

Os corpos mergulham numa catarse de gestos divinos, porém óbvios. Corpos vagabundos que se entregam ao acaso, frenéticos, numa confusa fronteira do devir, plasmada no aqui e agora de uma existência.

Passagem dilacerante que asfixia mais do mesmo entre confrontos e ardis.

Limite entre o jogo e o não-jogo que é espelho do real imaginado.

Metas, fases, metamorfoses.

Eles, porém, impávidos, seguem a caminho do fim”.



Fonte da imagem:

http://annawloch.com/artwork/2190269_PINA_BAUSCH_CAFE_MULLER_5.html


Referência:

¹A crítica a "Café Müller" e a "Masurca Fogo": A meio caminho entre o ser e o estar. https://www.publico.pt/2009/06/30/culturaipsilon/noticia/a-critica-a-cafe-muller-e-a-masurca-fogo-a-meio-caminho-entre-o-ser-e-o-estar-1389505. Acesso em 15.05.2018.

Link do vídeo de Café Müller: https://www.youtube.com/watch?v=WZd2SkydIXA

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