Com bastante segurança poderíamos afirmar que a visão do planeta, da perspectiva dos satélites ou de astronautas, já faz parte do imaginário comum da humanidade. Talvez até já tenhamos ficado alguns instantes hipnotizados diante daquela entidade a um só tempo familiar e estranha e tenhamos tido, cada um a seu modo, pensamentos ou impressões, emersos do confronto entre a própria experiência de vida e a visão brutalmente ampla da Terra, para sempre incomensurável, próxima e distante.
Este contato com a imagem da Terra evoca imediatamente sua imanência irresistível, cuja contemplação contrapõe a perspectiva pessoal e singular do observador a uma realidade forçosamente excessiva, muito maior e mais complexa do que a linguagem pode veicular. A própria existência dos terraplanistas/flat-earthers, mesmo em sua perspectiva cômica e ridícula, demonstra o choque que esse confronto proporciona. Há, no entanto, uma negação mais grave e pertinente a ser observada, muito mais diluída no status quo do que aquela dos que negam a esfericidade da Terra: a negação da tragédia generalizada em curso, virtualmente inadvertida, se estendendo além dos horizontes futuros. Os adjetivos podem parecer dramáticos e excessivamente exagerados, porém será que realmente o são?
A ciência, no seio da sociedade capitalista industrial, começou a se preocupar com possíveis consequências da ação humana no planeta no século XIX. Nos países onde se haviam possibilidades de produção científica, notadamente os industriais do Norte global, se começara a notar que, com o tempo, as emissões de gases provenientes da queima dos combustíveis fósseis – à época recém descobertos – provocariam alterações significativas na temperatura do planeta e decerto haveria muito mais em jogo, como foi admitido. Ainda assim, ninguém despendeu muita atenção, como facilmente verificamos após duas guerras mundiais, sucessivas crises econômicas, revoluções industriais e culturais, etc. Enfim, a efervescência histórica à que estamos familiarizados.
Nos anos 10 deste século, já fazem mais de sessenta anos que a ciência começou a observar com mais atenção o planeta e sua complexidade dinâmica, observando com perplexidade um pesadelo multifacetado emergindo a partir das excursões, cálculos, medições, teorizações. Poderíamos até, de maneira ingênua, imaginar que após tantas décadas, a humanidade já teria aprendido a traçar rumos comuns baseando-se nos alertas da própria instituição racional que lhe proveu as fundações técnicas para o santo graal do “desenvolvimento”. Desenvolvimento esse que persegue crescimento infinito num planeta finito, prometendo-nos maravilhas. Contudo, não nos é novidade a pletora de crises, polêmicas e nuances das sociedades humanas por todo o globo. Agora, acrescente-se a todas essas crises humanas a percepção de que já são verificadas alterações sistêmicas no planeta inteiro, consequências historicamente provocadas pela agência de nossa espécie, e que se agravarão de forma profunda e abrangente nas próximas décadas e séculos, para além de qualquer possibilidade de controle.
Peço licença à consciência do leitor, pois defendo a perspectiva de que não cabe mais cuidar da linguagem de forma a conservar algum tipo de esperança messiânica no futuro, ou manter as aparências. Nada está sob controle. Esse aforismo parece ser tão mais preciso quanto mais surgem à consideração simples fatos acerca do mundo que nos cerca. A profusão geral das crises à qual estamos inseridos deveria nos levar a admitir os dilemas sem nublar suas implicações desagradáveis. Por mais bem-intencionados que possamos estar, se faz necessário encontrar um ponto a partir do qual possamos utilizar uma mais linguagem dura, que denote exatamente o que o discurso hegemônico busca ignorar: a estabilidade planetária está em vias de sua desintegração. Para além do projeto civilizatório humano, e em contraste com nosso tempo de confortos, o futuro parece carregar escassez e destruição de tamanhas proporções que tornarão evidentes, cada vez mais, a irresponsabilidade de uma espécie viciada em poder. Pergunto-lhes: cabe ainda buscar meios de propagar o mantra “business as usual” do desenvolvimento mesmo em meio ao agravamento contínuo de nossos dilemas?
O modelo de desenvolvimento ao qual estamos historicamente implicados requer uma série de pressuposições morais e culturais que sustentam o que é considerado normal, evidente, até mesmo natural. Ora, nada mais natural que tenhamos, através da história, cultivado poder e dominação uns sobre os outros e sobre toda a Terra, não é mesmo? Afinal de contas, desde crianças somos ensinados a nos ver não como animais, mas como seres que possuem um “algo mais”, que curiosamente se torna a fonte de nosso poder. Poder kafkiano, que tudo autoriza e possui: toda forma de vida, todo elemento sob a terra, cada recôndito deste planeta, nada escapa ao domínio de nossa deliberação.
Pois este mundo que buscamos dominar está se voltando paulatinamente sobre nossas pretensões. Como comprovação, basta-nos voltar nossas atenções ao que cientistas de diversos campos têm afirmado, bem como o que diversas pessoas têm vivido, documentado, apontado aos gritos. Para começar, destaco as emissões de gases do efeito-estufa que, através da industrialização, do desmatamento e da agropecuária estão aumentando a temperatura média do planeta a taxas absurdamente velozes, mesmo que na perspectiva do tempo de vida humana pareçam ser diminutas e dispersas.
As mudanças climáticas não admitem mais serem vistas como teorias ou projeções distantes. Como se não bastasse a ação humana, o próprio planeta passa a interferir e agravar as alterações no clima, a partir dos “ciclos de realimentação positiva”. Além disso, se modificássemos as diretrizes da humanidade de forma radical hoje mesmo, os efeitos das emissões historicamente acumuladas já se propagariam por séculos, ou mesmo milhares de anos no futuro. Por isso alguns defendem que já estamos além de uma estabilização segura e viável. De fato, dentre cientistas e cidadãos críticos, muitos já denunciam a forma com que políticos e empresários dobram a ciência aos seus interesses, inviabilizando verdadeira ação global frente à crise. Mesmo com a criação na ONU, da convenção contra as mudanças climáticas, há mais de 25 anos, as emissões anuais de gases continuam sua curva ascendente – as tendências só se acentuam, e o tempo urge.
Outro aspecto que só muito recentemente tem ganhado a devida atenção é o plástico. Esse material, que há menos de cem anos se embrenhou na vida humana, é um bom marcador da inabilidade da gerência humana nos seus próprios rejeitos. Estima-se que a quantidade de plástico nos oceanos ultrapasse a massa de toda a vida marinha no ano de 2050. Estamos sendo extremamente eficientes em encher os oceanos desse composto sintético, que já chega a formar grandes bolsões flutuantes, que se movimentam com as correntes, poluindo desde ilhas remotas ao Ártico e à Fossa das Marianas, o ponto mais profundo conhecido. Reflitamos alguns instantes sobre isso... Como as outas tendências já citadas, esta também está em franca ascensão, pois estima-se que a produção (e descarte) de plástico continue em sua trajetória exponencial nas próximas décadas. Os sintéticos derivados de petróleo não são biodegradáveis, mas sob ação do calor, da fricção, e de outros fatores, se quebra em fragmentos minúsculos, chamados de microplásticos. Essas partículas absorvem impurezas do ambiente, e quando consumidas por peixes e outros seres, contaminam cadeias alimentares inteiras, além de bacias hidrográficas e até o ar. Nós não estamos imunes a mais essa ameaça, cujo controle está fora de questão. O mais óbvio seria interromper imediatamente a produção e dependência de plástico, mas alguém enxerga isto acontecendo sem prejuízo do status quo global?
Nesse contexto de desequilíbrio sistemático do clima terrestre e de intensa poluição, como será que os outros seres têm sido afetados? A resposta a essa questão revela algo cujas implicações ainda estamos começando a considerar, mas que está profundamente ligado à história da humanidade. Todos nós já nos deparamos ao longo da vida com a informação de que esta ou aquela espécie está ameaçada de extinção, ou com alguma lista das que já sumiram. Nas últimas décadas, contudo, vêm surgindo a noção de que o escopo dessas extinções é mais grave do que se pensava.
Trata-se da sexta extinção em massa da história do planeta, resultado de uma constelação de fatores: destruição dos hábitats pela agropecuária; introdução de espécies invasoras; caça predatória; mudanças climáticas; uso de agrotóxicos; poluição, etc. As taxas das extinções mais conservadoras apontam para valores 200 vezes mais altos do que a taxa de fundo (anterior à ação humana); as taxas mais ousadas chegam a valores de dez a vinte mil vezes maiores. Diversos relatórios e estudos apontam como as populações de animais não-humanos decresceram pela metade nos últimos 50 anos, e serão ainda mais afetadas nas próximas décadas. A presente extinção em massa está se desenrolando mais rápida e intensamente do que as outras cinco gravadas no tempo geológico; ou seja, os humanos estão sendo mais destrutivos à biota terrestre do que o asteroide que interrompeu a era dos dinossauros há cerca de 66 milhões de anos atrás.
Será que ainda se podem negar as tragédias ecológicas em curso? Ainda se pode admitir alguma crença de que a humanidade poderá manter seus padrões de consumo e “desenvolvimento” num planeta em crescente deterioração? Será mesmo que podemos discutir caminhos futuros que desconsiderem a discussão sobre o sistema de produção econômico e sua trajetória histórica? Deixo aqui alguns dos questionamentos preliminares que essa discussão pode inspirar. Mas insisto neste desafio que se interpõe à consideração da condição imanente ao mundo contemporâneo. Da próxima vez que olhar para uma imagem do planeta, ou quando ouvir menção ao “desenvolvimento econômico”, ou às benesses do capitalismo financeiro, ou críticas a ele, proponho a lembrança destes aspectos obscuros da realidade atual. Se essas discussões não interferirem nas dimensões cultural, política, ética, econômica e caso não se concretizem em ações imediatas, enquanto ainda temos relativa estabilidade, o amanhã se tornará cada vez mais nefasto. Espero que o leitor também enxergue porque tais adjetivos, neste caso, são os que melhor transmitem a gravidade tempestuosa do que se busca expressar.
Referências das imagens
https://www.robinwood.de/
http://channel.nationalgeographic.com/one-strange-rock/
https://cdn.theatlantic.com/assets/media/img/2018/03/02/final72dpi/1920.jpg?1520016417