A peça “Titus – Uma reverberação da Obra de William Shakespeare” da Reverbe Território Cênico em coprodução com o Coato Coletivo que teve sua estreia em junho no palco do Teatro Martin Gonçalves é muito potente e transgressora no que diz respeito à quebra das convenções da linguagem teatral. Um experimento/acontecimento/espetáculo ousado, criativo e bem-sucedido que ultrapassa a fronteira das linguagens com uma ruptura da forma e com um discurso potente que faz uma ponte entre a obra shakesperiana (a crise política de Roma, a desmedida do poder e suas trágicas consequências) e a grave crise política que estamos vivendo hoje, além de trazer uma reflexão sobre a crise do drama.
Para mim foi uma experiência impactante. Saí do teatro muito mexido e a imagem que consegue traduzir o que senti e que de alguma maneira ainda reverbera quando escrevo esse texto é a da pedra lançada num lago que ao tocar na água produz as vibrações numa sequência de ondas concêntricas. Eu me sinto como sendo o lago e “Titus” é a pedra.
É essencial que antes de continuarmos a refletir sobre a reverberação façamos um breve resumo da obra “Titus Andronicus”. A peça shakespeariana de 1594 é ambientada nos últimos anos do Império Romano e teve inspiração na tragédia Tiestes de Sêneca. Começa com o regresso triunfante do nobre general Titus após a derrota contra os godos, que traz como prisioneiros a rainha Tamora e seus três filhos, um dos quais foi morto pelo guerreiro como forma de honrar seus próprios filhos mortos na guerra. Convidado pelo povo a ser o mais novo imperador, Titus rejeita por não se achar apto e decide indicar para tal posto o mau e corrupto Saturninus, ao invés do justo e ilibado Bassianus, escolha esta que provoca uma série de atrocidades, violências e contendas, a começar pelo embate entre os dois irmãos na disputa pelo poder.
Aaron, amante de Tamora, é a personificação do mal e ambiciona conquistar poder com o auxílio dos dois filhos da rainha, Chiron e Demetrius, com os quais arquiteta a morte de Bassianus e o estupro de Lavínia, filha de Titus que tem a língua e as duas mãos cortadas pelos irmãos como modo de garantir a total omissão do delito cometido. Titus quer vingar a morte dos filhos e as atrocidades cometidas contra Lavínia. Ele convida Saturninus e Tamora para um banquete que fora preparado por ele mesmo. A rainha Tamora come uma torta feita com a carne dos próprios filhos que violaram Lavínia. Sucede-se uma série de mortes. Lucius, o último sobrevivente dos 25 filhos de Titus, é eleito novo imperador que condena Aaron à morte e restabelece a ordem política no império.
A peça supracitada aborda em sua estrutura temática uma preocupação com questões políticas, especificamente no que concerne aos jogos de poder, uma das características basilares da dramaturgia de Shakespeare, como afirma Heliodora (2009): “No plano político, Shakespeare se preocupou com a natureza do governante, seja ele bom ou mau. Ele deu ênfase ao ‘jogo do poder’ nas peças cujas temáticas envolvem disputas políticas”. (HELIODORA, 2009, p. 55).
Esta temática prevalece na construção da dramaturgia do espetáculo “Titus – Uma reverberação...”, pois há a presença de um discurso que explora o embate dos jogos de poder explicitados e que se reverberam nos encaixes intertextuais da narrativa proposta pelo encenador ao tomar de empréstimo as situações da obra do bardo para a construção discursiva entremeada entre a história original na ficção (disputas políticas em Roma) e a história real da crise política brasileira, como por exemplo, na cena em que Saturninus e Bassianus discursam para o povo com a presença dos tribunos e senadores. Houve um critério do diretor de estabelecer, na cena, um momento de eleição ambientado na ficção em Roma, mas do ponto de vista do discurso estava ali implícito as ideologias partidárias da estrutura eleitoral brasileira, sendo que Saturninus representava a direita, Bassianus, a esquerda e os tribunos, obviamente o legislativo. Em outro momento na fala de Saturninus fica explícito a construção discursiva pautada na situação histórica e política brasileira: “É importante mantermos a hegemonia da tradicional capitania hereditária. Eu sou um tradicionalista... dominaremos [...] as senzalas indígenas, quilombolas, o pré-sal. Somos o progresso!”
A peça, dirigida por Marcus Lobo e com dramaturgia assinada coletivamente pelo diretor e atores, revela o caos de um império em que ocorre muitas mortes, estupro, violência por conta da desmedida da disputa de poder e, na reverberação, insere-se, de maneira muito funcional, a linguagem do audiovisual que dialoga com as cenas do “acontecimento”, reforçando pontos de vista, perspectivas da narrativa de cada personagem e efetua o efeito de recorte de uma imagem, para enfatizar o significado de uma palavra escrita numa pá, por exemplo, ou valorizar o discurso de uma personagem ao utilizar o enquadramento, seja para mostrar um detalhe de expressão do personagem, seja para recortar uma ação, situar ou reforçar o discurso. Há também o uso de efeitos de sobreposições de imagens e planos detalhe que foram utilizados para narrar, por exemplo, a história cruel de violência sofrida por Lavínia, filha de Titus (quando ela teve as mãos decepadas). Solução muito inteligente, pois não houve exageros ou tentativa de mostrar o ato em cena, pelo contrário, houve sutileza num trabalho de construção de metáfora visual.
O uso da câmera é integrado ao espetáculo e está em cena o tempo todo sendo operada pelo próprio diretor da peça que, continua presente no acontecimento, na função de condutor das imagens. Ele elegia quais imagens iria recortar. A relação da câmera com os personagens é explícita, mas em alguns momentos ela se integra ao todo do espetáculo como mais um personagem em cena. Há esse jogo dinâmico de uma interação que, em certos momentos, promovem uma fusão entre o que ocorre na cena no teatro e os registros dos recortes audiovisuais da peça. Esse jogo me parece positivo como efeito de reforçar, na recepção, a importância do refletir sobre a temática explorada em cena.
O espetáculo conforma marcação e espontaneidade, há identidade cênica e distanciamento, a utilização de microfones, narração, canções e números musicais, aproximação do personagem e apresentação do eu próprio em cena – refere-se aos momentos que o ator se distancia do personagem para fazer alguma observação acerca do que está sendo apresentado – para narrar elementos do processo criativo da montagem como também para situar os acontecimentos contemporâneos explorados na encenação. Os atores Breno Fernandes, Genário Neto, Mari Gavim, Natielly Santos e Victor Fernandes são convocados a um jogo de troca de papeis já que eles se revezam o tempo inteiro na interpretação das personagens, cada um trazendo a sua contribuição e sua leitura, o que ao meu ver enriquece a tessitura dialógica do discurso que é proposto pelo encenador.
Uma dramaturgia que tem como estofo a obra de Shakespeare e consegue se reinventar, se reestruturar, se reatualizar a partir do critério de se refletir sobre a crise política atual no Brasil se valendo de uma construção discursiva plural ao tratar de temas como os jogos de poder, a violência contra LGBTs e contra a mulher, crise política do país: golpes, corrupção, discursos de ódio.
“Titus – Uma reverberação da Obra de William Shakespeare” é, para mim, além de expressão artística, um ato político que reverbera como um chamado à tomada de consciência de qual é o nosso papel na sociedade. Qual é a nossa responsabilidade nesse caos instalado? E aí vamos continuar achando que o problema do país é culpa do outro? Como dito na peça: que lobo você está alimentando? O lobo da discórdia, da vingança desmedida por conta de um individualismo cruel imposto pelo sistema ou você está tentando alimentar o lobo da ética, da responsabilidade, do compromisso com o coletivo? Estamos vivendo uma crise mundial muito grave que está nos levando para uma desumanização que pode não ter volta, se não agirmos já. É preciso que cada um se manifeste. Há que se lutar pela mudança que queremos, mas só lembrando que essa mudança começa em cada um de nós.
Shakespeare se inspirou e se apropriou da obra “Tiestes” de Sêneca. O diretor da encenação, por sua vez, se apropriou da obra do bardo, ao criar essa reverberação e eu ouso a me apropriar de fragmentos da narrativa do espetáculo para concluir o desfecho dessa análise ao afirmar que “não podemos negar que em pleno ano de 2018 as ações dramáticas que são apontadas em Titus deveriam ser ultrapassadas não pelo ressentimento de valores intrínsecos ou por serem consideradas erradas principalmente para nós que vivemos na contemporaneidade”. [...] “Felizmente ou infelizmente às vezes a gente retrocede ao passado. Aí vai e volta. Fica nesse vai e volta. E aí retrocede de novo e de novo”. [...] “O que nos interessa é que estamos vivendo no meio de uma realidade social complexa e estilhaçada e ela necessita de novas forma de acesso em sua compreensão”.
Referências:
HELIODORA, Bárbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Crédito Imagem: Giovani Rufino. http://www.jornalgrandebahia.com.br/2018/06/salvador-espetaculo-titus-uma-reverberacao-da-obra-de-shakespeare-esta-em-cartaz-no-teatro-martim-goncalvez/