TECENDO A MANHÃ*
Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro: de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma tela tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entre todos, se entretendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão
João Cabral de Melo Neto
No dia 08 de julho foi comemorado o Dia Nacional da Ciência e o Dia do Pesquisador Científico. Evidenciar a produção cientifica do país, estimular o gosto dos jovens pela ciência e divulgar o saber científico para a sociedade são os objetivos que norteiam a instituição da data. Seria muito bom podermos comemorar, mas não sei se houve o que comemorar, pois a premissa autoritária do atual governo foi cortar recursos das universidades federais. Sem dúvida, isso causará retrocessos nas pesquisas acadêmicas brasileiras, e consequentemente afetará a qualidade da educação. E fica evidente uma atitude de menosprezo pela cultura, pela liberdade de expressão e de livre pensamento.
De certo nos choca essa involução e certamente lutas iremos travar para mantermos o regime democrático. E ciente disso, proponho aqui, a partir do poema "Tecendo a manhã" de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), refletir acerca da importância da construção do conhecimento a partir da experiência e do espírito de coletividade. Achei bom reforçar essa reflexão sobre e com a força da poesia e da arte, territórios da área de humanas que me são caros e que parece provocar pavor nas mentes estreitas de muitos representantes políticos, principalmente da extrema-direita.
A partir da metáfora presente no poema, nós podemos refletir acerca da importância da relação com o outro como modo de nos constituirmos, como meio de registrar nossa experiência no mundo em que, cada galo a cantar simboliza um indivíduo com seu conjunto de memórias que se entrelaçam para formar nossa identidade cultural.
Esse canto do galo que vai tecendo a manhã com o auxilio dos outros galos metaforiza a ligação entre o individual e o coletivo. A relação, o encontro eu-tu, a presença corporificada na atenção coletiva em busca de novos voos. João Cabral sinaliza por meio da poesia que precisamos uns dos outros. “Um galo sozinho não tece uma manhã” faz referência a “uma andorinha só não faz verão”, portanto o individual se constitui em contato direto com o outro para formar o coletivo, ou seja, um conjunto solidário de esforços para construir o sentido e a constituição do humano que acontece por meio da experiência.
Segundo Bondía, experiência é tudo o que nos atravessa, tudo o que nos acontece e o sujeito da experiência é alguém que “se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião” (Bondía, 2002, p. 25). O saber da experiência ocorre na relação entre o conhecimento e a vida humana. Daí a importância de mergulharmos no desconhecido, de nos expormos perante a vida a partir do contato com o outro, da consciência de refletirmos acerca do papel que temos a desempenhar em nossa comunidade e como essa atitude reverbera na construção de nosso futuro através do conhecimento.
Ítalo Calvino diz que “o grande desafio (...) é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo” (CALVINO, 2009, p.127). A reflexão se acerca das possibilidades múltiplas das relações e associações diretas que podem ser tecidas em conexão com o processo de pesquisa acadêmica.
A pesquisa é uma construção que se desenvolve a partir de um conjunto de conhecimentos preexistentes e dá-se pelo entrecruzamento de conceitos para se consolidar novas abordagens. É necessário lembrar que isso também só pode acontecer com uma dose muito generosa de humildade para assumir a responsabilidade de doar-se e de aceitar críticas e opiniões de quem já escreveu sobre e da própria comunidade acadêmica e repito, há de se ter coragem para mergulhar no desconhecido, mas para isso se não houver recursos suficientes, não adianta o esforço.
O principal objetivo em estarmos imersos em problemáticas tão importantes e de nos debruçarmos sobre questões, muitas vezes, difíceis de serem respondidas, é o de encontrar soluções para melhorar o mundo. Isso nos toca e nos fortalece, nos humaniza enquanto seres enredados que somos.
Eis que precisamos olhar com atenção para a importância de que a pesquisa acadêmica não é um produto de nosso ego, ao contrário, permeia na sua base o coletivo. Há um trabalho individual, mas não consegue se sustentar sozinho. O conhecimento deve ser percebido com um bem comum, um bem da, e para a coletividade. É evidente que as pesquisas são imprescindíveis para o desenvolvimento do país, mas o que vemos no governo é uma atitude arrogante e meramente excludente que passa ao largo do sentido coletivo que deveria ser o ponto primordial da democracia, já que não há governo, muito menos democracia sem o humano, sem o povo.
Na pesquisa acadêmica há o tecimento coletivo dos vários "fios de sol para tecer a manhã" do conhecimento, o entrecruzamento de muitos autores e textos, assim como na vida há a premência da atitude solidária para a preservação da existência. É preciso estar atento e forte para a única verdade que importa e que nos impele a seguir: vivemos em comunidade e precisamos uns dos outros para nos realizarmos, para sermos quem somos, para nos constituirmos.
Da mesma forma que um galo sozinho não tece uma manhã, mas precisa formar uma rede com muitos outros galos, nós humanos, sozinhos não somos praticamente nada. Assim como o galo expressa sua “voz interior” fazendo-a ecoar no mundo afetando outros galos a se manifestarem também, tecendo em conjunto a manhã, assim deve ser com relação à produção de conhecimento.
No poema, o autor dá seu “grito” diante do mundo e aguarda que outros possam também ecoar esse grito e o mais importante, que todos possam emitir seus “gritos” a partir do conhecimento e nesse conjunto de inúmeros “gritos” possamos dar sentido e constituirmos o conteúdo da obra através da experiência.
E agora, mais que nunca, é preciso fortalecermos esse laço, tecermos estratégias de luta e resistência para a manutenção de nossa democracia, pois, como afirmou Luciana Hidalgo: “[...] só nos resta pensar, escrever, criar, estudar, ensinar, cada vez mais e melhor. É preciso abrir clareiras de inteligência e beleza na mata cerrada e obscurantista diariamente, sistematicamente, e nos fortalecermos entre nós.
* Publicado no livro A educação pela pedra (1966). In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
Gravura: "Arte de Felipe Lima Mayerle/Thapcom, sobre obra de Henri Matisse"
Referências:
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. Nº19.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HIDALGO, Luciana. Texto publicado no perfil da autora no Facebook: < https://www.facebook.com/luciana.hidalgo.9/posts/2264348783678135>