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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

A loucura na esfera pública e o humor como subversão






Vivemos um tempo insano. Meu ouvido, às vezes, sente vontade de ensurdecer toda vez que escuta certas frases. O discurso de ódio tem se tornado cada vez mais comum, seja na fila do pão, ou dentro do uber, as pessoas não se sentem mais constrangidas a externalizarem seus pensamentos mesquinhos. Em tempos de polaridade, cegueira coletiva, retrocesso constante dos direitos, precarização de todos os bens da seguridade social, banalização da violência racial e do feminicídio torna-se mais que necessário ser resistência.


Neste texto gostaria de apresentar o poder do humor subversivo como manifestação política contra os discursos que oprimem as minorias. A potência da comicidade está totalmente vinculada à sua capacidade de causar reflexão e incômodo por meio do riso.


O teórico russo Mikhail Bakhtin apresenta em 1946 uma tese acerca do riso como uma manifestação que caminha na contramão da cultura oficial. Segundo o teórico, o humor tem um aspecto libertador: “Brinca-se com o que é temível, faz-se pouco dele: o terrível transforma-se num 'alegre espantalho'” (BAKHTIN, 2008, p. 79). Em tempos insanos é preciso, sobretudo, não temer, torna-se fundamental ridicularizar as atitudes discriminatórias de modo que quem as pratica se sinta extremamente constrangido.


Para Bakhtin (2008), o riso é ambivalente e tem potencial para destronar verdades estabelecidas e inverter relações de poder cristalizadas. A força do riso está na capacidade de abarcar o movimento contraditório da realidade e de ser dialético. Pelo fato do cenário da manifestação do riso ser a feira, a praça pública, o carnaval e demais ambientes externos à vida oficial normatizada por hábitos duros e firmes, o riso ocorre livremente, de modo que Bakhtin interpreta a cultura popular como antítese da cultura oficial.


A realidade atual brasileira por vezes ganha ares distópicos, muitas pessoas dizem estarmos vivendo um retorno à Idade Média, a onda conservadora ganhou uma força vertiginosa de modo que uma das maneiras de se contrapor a essa loucura é mostrando quão ridículo é esse culto reverente à ignorância, e nada melhor do que o riso irreverente para promover oposição à rigidez da devoção ao atraso. As palavras de Bakhtin são muito atuais:


se a face oficial, religiosa, estava orientada para o passado e servia para sancionar e consagrar o regime existente, a face risonha popular olhava para o futuro e ria-se nos funerais do passado e do presente. Ela opunha-se à imobilidade conservadora, à sua “atemporalidade”, à imutabilidade do regime e das convenções estabelecidas, punha ênfase na alternância e renovação, inclusive no plano social e histórico (BAKHTIN, 2008, p. 70).


O caráter revolucionário e questionador do humor tem a força de promover reflexão e crítica social. Não é possível sair ileso quando se é alvo de uma piada bem feita.


O espetáculo “Acendam as luzes” do humorista Yuri Marçal é um exemplo nítido de humor que provoca um choque ao enfiar o dedo nos comportamentos racistas e estraçalhá-los por meio de piadas ácidas que levam o expectador questionar a naturalização dos hábitos intolerantes. O mito da democracia racial naturaliza o racismo e minimiza seus efeitos, considerando que existem as mesmas oportunidades para negros e não negros e se os negros vivem à margem da sociedade é por pura falta de competência e interesse deles. Esse mito desconsidera séculos de desigualdade e violência que impõem ao homem e mulher negra prejuízos inestimáveis. Yuri Marçal consegue, por meio da comicidade, no formato do stand up comedy, desconstruir o mito da democracia racial. Suponho que qualquer racista se sentiria muito constrangido num show desse humorista.


São tempos insanos, nesses tempos toda forma de resistência é uma arma. Que o nosso riso irreverente seja tão alto que cause um extremo estardalhaço, é preciso seguir incomodando, ou morreremos no silenciamento ensurdecedor.


Referências:


BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. 6. ed. Trad.: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade de Brasília, 2008.


Fonte da imagem de Yuri Marçal: https://www.lonanalua.org.br/single-post/2017/05/25/Yuri-Mar%C3%A7al-estr%C3%A9ia-do-espet%C3%A1culo-%E2%80%9CAcendam-as-Luzes%E2%80%9D

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