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Um mundo sem contradições

Light Yagami é um sujeito brilhante. Estudante secundarista, inteligente, entediado com os estudos, mas inconformado com as mazelas do mundo. Em um belo dia, um caderno esquisito cai do céu. Ao abri-lo, ele lê a seguinte instrução: é possível tirar a vida de qualquer pessoa escrevendo seu nome e tendo visto sua face.


E o que Light faz? Decide testar a veracidade das palavras do caderno. Tendo a oportunidade de resolver os problemas do mundo, de acabar com todo o mau na terra, a oportunidade à vista não poderia ser perdida. E, eureca! deu certo. Morre de ataque cardíaco um bandido que acabara de ser preso, estampado com a cara na tv e seu nome na legenda. É verdade! É possível fazer justiça com as próprias mãos já que o Estado é dócil, frágil, incapaz de interromper e eliminar o lado cruel da humanidade.


Com uma alma de justiceiro apocalíptico, Light, apelidado posteriormente de Kira, decide escrever, em seu death note, todos os nomes de malfeitores do mundo. Sua ideologia de fundo é que a terra só pode ser purificada mediante a exterminação de todas as pessoas criminosas.


Para Kira, a ideia parece boa, afinal as pessoas querem o fim da maldade do mundo; elas desejam e esperam o salvador. O problema é que, em geral, as pessoas quanto mais empolgadas por atos de justiça, mais tendem a agir irracionalmente.


Sem refletir sobre sua própria ação, Kira se torna o assassino dos assassinos. Pior do que qualquer malfeitor, porque a “sua justiça” é imoral e bárbara. Equivocadamente, acredita que alguns indivíduos simplesmente são más e outras bons por natureza. Jamais lhe ocorre que todos podem, potencialmente, cometer o mau. Acredita que o medo é o único caminho para inibir a criminalidade. Jamais lhe ocorre que assassinatos, estupros e roubos podem ter origem no próprio seio social. Não passa por sua mente que as pessoas que cometem perversidades podem ser ressocializadas, retornem à sociedade. Não, ele não enxerga que está praticando o mau ao “eliminar” o mau. E quando o Estado age para descobrir o assassino, ele, Kira, começa a tirar a vida de policiais inocentes, por considerar que estão atrapalhando a verdadeira revolução social, a paz na terra, a fraternidade universal entre os homens. Esse é o retrato de alguém que acredita ser o escolhido para varrer todos aqueles que impedem esse mundo perfeito.


Nosso personagem, de um anime japonês chamado Death Note, é alguém que esperou uma oportunidade, apenas um gatilho para externar tudo que estava reprimido, toda sua angústia em não aceitar uma existência em que pessoas tiram a vida de outras, cometem diferentes delitos ou simplesmente não concordam com suas ideias. E por que fazem isso? Porque no fundo elas são más e incorrigíveis. Este é o pensamento de Light Yagami.


Pois bem, caros leitores, quando encontrarmos um cenário onde o extremismo interior facilita a sua descarga, toda a desgraça reprimida vem à tona. Por aqui, em Pindorama e alhures, os potenciais kiras, os justiceiros, os caçadores de corruptos, de comunistas, negros, esquerdistas, gaysistas, traficantes, estrangeiros, assassinos, estão prontos a fazerem sua justiça, a perseguir os “sub-humanos”, eliminando os contraditórios.


O extremismo pode manifestar-se de diversas formas, e ao longo da história tivemos vários exemplos, como as grandes revoluções modernas. Hoje em dia é bastante comum o extremismo das redes sociais virtuais, milícias que vociferam ódio e intolerância com os que pensam diferente. Mas não para por aí. Semana passada, no último dia 20 de agosto, chamou atenção o comportamento do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, do Partido Social Cristão, que comemorou, de forma patética, a morte do sequestrador que mantinha 37 reféns em um ônibus. A comemoração efusiva, para um cristão e um representante eleito, num Estado Democrático de Direito, é um tanto contraditória. Não? Várias pessoas foram na mesma onda e também celebraram o acontecido. Talvez um mal maior tenha sido evitado, mas a reação foi bastante doentia e preocupante.


Witzel é essa figura, como tantos outros, que se veem como seres purificados, cidadãos de bem, devotos da fé religiosa, seguidores dos mandamentos tradicionais, trabalhadores obedientes, bons pagadores de impostos. Mas, acreditam numa fórmula pobre e reducionista: os problemas sociais serão resolvidos pela eliminação do outro, retirando o empecilho da "correta" convivência. O contraditório, as vozes e comportamentos dissonantes, as ideologias divergentes, atrapalham o país (será?). Não seria melhor colocar essa turma no divã? Freud explica!


Lamentavelmente, vivemos um movimento perigoso em que “bandido bom é bandido morto”, ou “bandido não é gente”, como vi recentemente num post no Youtube, com alguém identificado como “Sergio Moro Caçador de Corruptos”. Espírito do "morismo"? (risos)


Descendo um degrau mais profundo, seria melhor ter consciência de que a forma como a sociedade está organizada pode ou não favorecer que a agressividade seja descarregada na eliminação do outro. Somos, sim, potenciais extremistas! Não fiquem chocado.s


Para o psiquiatra e psicanalista Anthony Storr, falecido em 2001, que escreveu sobre a Agressividade Humana, obra pouco conhecida, a própria agressividade seria inata em nossa espécie, não um efeito de frustrações ou atividades externas. Para ele, sendo a agressividade algo biológico, deveria ser canalizada a coisas construtivas, positivas, e não ser altamente reprimida, com risco de criar efeito colateral ao próprio indivíduo e à sociedade. “Somente quando o ímpeto agressivo é bloqueado ou frustrado, ele pode se tornar contestável e perigoso”[1] (p.46). Então é necessário que instituições e representantes políticos estejam operando para favorecer que pessoas, com variados graus de agressividade (loteria biológica), descarreguem-na sem prejudicar as relações sociais, impedindo-as de serem lesivas à coletividade.


Quando autoridades louvam a morte de uma pessoa estão colocando toda a culpa no indivíduo e desprezando a espécie. Suas palavras também reverberam e dão vazão a comportamentos rudes. Também há fracasso na civilização em não ter socializado a vítima, considerando que seu padrão cognitivo seja reversível. Com isso, não quero dizer que todo indivíduo bem socializado se comportará, inevitavelmente, em completa adequação com a lei, o que é uma grande falácia. Mas desprezar o poder dos aparelhos sociais, sem dúvida alguma é uma completa ignorância e sinal de pobreza psíquica. Fórmulas simples não explicam a complexidade que nos rodeia, somente fortalece crenças infundadas.


Discursos como esses, de que o mau, a barbárie está sempre no outro, que somos isentos de cometer coisas erradas, de que rumaremos a um mundo sem discórdia, sem conflitos, sem contradições, é sintoma de uma condição humana bastante fragilizada. “Ao menos que alguma mutação biológica altere o caráter geral do homem como espécie, é impossível acreditar que possa haver uma sociedade sem conflito ou sem competição” . [2](p.95).


Para concluir, nas palavras de Storr: “o homem somente estará a salvo dos conflitos quando no útero ou no túmulo: lugares aprazíveis ou privativos que podem desejar ou lamentar”. [3] (p.101).


Até a próxima!


[1], [2], [3]. STORR, Anthony. A Agressividade Humana. Tradução Cleci Leão. São Paulo: Benvirá, 2012.


Fonte da imagem: https://hdwallpapers.cat/kira-light-yagami-manga-death-note-anime-SRv5


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