Há cerca de dez anos, um colega da minha querida UFBA, após uma aula sobre política brasileira do curso de Ciências Sociais, afirmou, entre pares, que, a não ser pela ainda significativa relevância nos estudos sobre Ideologia, o marxismo estaria academicamente morto. Embora eu não tenha concordado com a totalidade da fala naquele momento nem tampouco concorde agora, tendo em vista que a tradição do revolucionário alemão tem mostrado relevância através de grandes quadros acadêmicos mundiais, direta ou indiretamente, nas análises de gênero, políticas públicas, conjuntura internacional etc.; o caro colega estava com a razão em destacar a relevância do marxismo nos estudos do fenômeno ideológico – ainda que esta tenha se tornado inegavelmente uma corrente teórica não hegemônica nos estudos econômicos e em alguns outros campos, especialmente a partir da década de 1980.
Arrisco-me a dizer que a ascensão da extrema-direita ao redor do mundo nos últimos anos veio não só a reforçar a importância do marxismo no campo aqui destacado, como a elevá-lo a outro patamar, se tivermos em mente os anos 2000, época da fala a qual me referi.
Em sua obra Primeiro como tragédia, depois como farsa, acerca da explosão da crise do sistema capitalista provocada pelas hipotecas subprime nos Estados Unidos, em 2008, Slavoj Zizek afirma:
“os mercados se baseiam de fato em crenças (até mesmo sobre as crenças dos outros); assim, quando os meios de comunicação se preocupam com o modo ‘como o mercado reagirá’ às medidas de salvamento, trata-se não apenas das consequências reais, mas da crença dos mercados na eficácia do plano. É por isso que essas medidas podem funcionar mesmo se estiverem economicamente erradas” (ZIZEK, 2011).
Considero essa passagem bem ilustrativa da dupla potência expressa nos estudos marxistas sobre o tema Ideologia: primeiro, por retratar bem o quanto as atuais análises acerca dos mecanismos de interpelação ideológica mantêm uma linha de continuidade com os estudos althusserianos dos anos 1960, 1970, o que demonstra hegemonia e excelência do marxismo nessa área; segundo, porque ela realça bastante o fato de que a Ideologia não deve ser concebida somente a partir do prisma das ideias, como dá a entender as correntes não críticas que se debruçam sobre o fenômeno, mas como algo dotado, também, de materialidade – “a Ideologia é também material”, já diria Louis-Althusser (1980), historicamente um dos teóricos marxistas mais criticados, embora reconhecidamente um dos filósofos que mais se ativeram ao tema e inovaram na conceptualização envolvendo este campo. As medidas econômicas adotadas pelo governo dos Estados Unidos tenderiam a dar certo (e deram, de certo modo) mesmo se fossem erradas pela crença ideológica na sua eficácia – a crença (aqui, metafísica) se traduz em substância concreta.
Você deve estar pensando que defendo a tese de que a chegada da extrema-direita ao governo em várias partes do mundo confirmaria as teses marxistas relativas à Ideologia pelo fato de tal força política propagar constantemente um discurso agressivo anti-esquerdista e mesmo antiliberal, ou seja, pela sua capacidade de colocar em circulação práticas e discursos ideológicos bem definidos e baseados na paradoxal postura de reacionarismo de valores e político e no ultraliberalismo econômico. No entanto, defendo que essa postura da extrema-direita deve ser vista como uma espécie de primeira camada ideológica, funcionando no sentido de evocar a defesa da ordem exposta contra outra ordem alternativa imaginária, embora apontada pelos extremistas como eminente, prestes a explodir, algo a dobrar ali a esquina.
Operando assim, portanto, o discurso fundamentalista da direita, ao contrário do que muitos atualmente apontam, não está agindo dentro da lógica da parapolítica, isto é, de uma “tentativa de despolitizar a política (traduzi-la para a lógica da polícia)” (ZIZEK, 2016, p. 209), já que nessa linha tático-operacional da dimensão política, continua Zizek, “o conflito político é aceito, mas é reformulado na forma de uma competição, no interior do espaço representacional, entre as partes/agentes reconhecidos, para a ocupação (temporária) do lugar do poder executivo” (Ibidem). Ainda segundo Zizek, a lógica discursiva e prática do fundamentalismo de direita configuraria, isto sim, a esfera da ultrapolítica, pois funcionaria buscando “despolitizar o conflito, levando-o a um extremo pela militarização direta da política – reformulando-o como uma guerra entre ‘Nós’ e ‘Eles’, nosso Inimigo, na qual não haveria base comum para o conflito simbólico – é profundamente sintomático que, em vez de luta de classes, a direita radical fale de guerra de classes (ou de sexos)” (Ibidem).
Acabar com o “perigo comunista” seria eliminar a possibilidade dessa guerra, afinal seríamos todos entes individuais abstratos forjados na nacionalidade e no mercado: brasileiros, norte-americanos, húngaros, britânicos etc., todos pagadores de impostos e consumidores de serviços públicos e de mercadorias.
Como notamos, tanto na parapolítica quanto na ultrapolítica nós teríamos, portanto, o funcionamento de uma lógica de negação da política enquanto uma dimensão dialógica ampla de conflito aberto de ideais entre todos os sujeitos individuais e coletivos e sob todas as vozes estruturado na exposição, choque e harmonização de ideias a se materializarem ou não em políticas públicas concretas e/ou elaboração de leis e regulações tanto aplicadas à esfera da sociedade civil quanto à da própria reprodução do aparelho de Estado no tempo e no espaço. Entendo que a diferença entre ambas, no entanto, reside na sofisticação.
Enquanto o conflito na ultrapolítica surfada pela extrema-direita mundial é aberto, enfático, bem delimitado, expresso na lógica do “Nós” (defensores do Ocidente, representantes dos valores judaico-cristãos, economicamente ultraliberais, patriarcais etc.) contra “Eles” (socialistas, progressistas, feministas, ecologistas etc.); na parapolítica, ele aparece na forma de negação da política enquanto espaço conflitivo de ideias entre aqueles não reconhecidos como agentes políticos legítimos (corpos coletivos que não aceitam a lógica do jogo-político liberal e que atuam como proponentes de uma democracia mais radical, a exemplo dos anarquistas e marxistas das correntes conselhistas). Noutros termos, segundo a lógica da parapolítica o conflito deve limitar-se aos mecanismos liberais de representação, à burocracia do Estado, à perspectiva administrativa, de equilíbrio fiscal dos entes federados, num sentido amplo, e, por fim, aos ditames da “eficiência” do mercado a submeter a esfera pública estatal.
Com a diferenciação do funcionamento da parapolítica em relação à ultrapolítica, fica clara a percepção dos mecanismos operacionais da primeira como constituintes de uma segunda camada ideológica. Nela não temos um conflito bem nítido, não há inimigos precisamente delimitados, pois a própria possibilidade de grupos políticos inimigos é algo estranho à parapolítica, pois nela, ao se reduzir a possibilidade de conflito à arena representacional, esta última funcionando como um filtro a separar as forças políticas legítimas das ilegítimas, substitui-se inimigos por adversários. Paradoxalmente, tal operação, mesmo soando como uma ação civilizatória – já que não busca a eliminação de uma força política por outra, mas a convivência conflituosa dentro da legitimidade liberal – na verdade é dotada de uma violência considerável cuja possibilidade de reprodução se dá por meio de uma operação ideológica muito mais sofisticada do que a presente na ultrapolítica, isto é, através de um ainda mais complexo e estruturado funcionamento da Ideologia e de seus mecanismos de interpelação. E é neste sentido que a época atual explica muito mais a relevância dos estudos marxistas sobre o fenômeno ideológico que aquela da fala do meu colega universitário.
Espero ter deixado claro por que a ascensão da nova extrema-direita ao poder mundo afora explica com certa precisão a relevância dos estudos marxistas sobre o fenômeno ideológico, como o entendimento do discurso e das práticas dessa corrente política devem ser vistos como a reafirmação do poder da Ideologia não tanto pela obsessão no autoposicionamento de tal força numa espécie de campo “não ideológico”, o que na prática não existe, mas observando-a justamente enquanto responsável por discursos e práticas constituintes de uma primeira camada ideológica, uma esfera de expressão de falseamento da realidade menos sofisticada e menos complexa, portanto.
Por fim, apontarei por que a emergência da extrema-direita elevou os estudos marxistas no campo da Ideologia a um novo patamar. Ora, quando Althusser pontua o fenômeno ideológico como algo que transborda as fronteiras do discurso para a esfera da materialidade, em seu clássico Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, ele defende – e não poderia ser diferente diante de quem entende tal fenômeno como algo para além do discurso – que a Ideologia se ramifica na economia e na produção, na medida em que guia e sustenta a dominação dos produtores diretos. Em sua essência, portanto, na substancialidade do processo de reprodução da ideologia, não há mudança alguma entre o que aponta os estudos de Althusser e os de Ernesto Laclau, Slavoj Zizek, Alain Badiou e demais autores críticos que vêm se destacando nessa temática, sobretudo a partir da década de 1980.
Por acreditar na máxima do materialismo dialético de que, grosso modo, a realidade se modifica com certa independência em relação ao pensamento, que este último é condicionado pela realidade com a qual se defronta e que o cerca, embora ao mesmo tempo em que a condiciona, enfim, aponto para o fato de que a própria extrema-direita mudou, ao mesclar um discurso ultranacionalista, xenófobo e reacionário ao ideário ultraliberal na esfera econômica, algo impensável à extrema-direita fascista da primeira metade do século passado, por exemplo.
Logo, diante dessa operação adaptativa de uma força política concreta como modo de se fazer viável no interior de um novo contexto histórico, os estudos marxistas da Ideologia atingiram um grau de sofisticação tal, que é possível observar o próprio marxismo, de uma maneira ampla, como uma corrente de pensamento renovada a partir do e no diálogo com a psicanálise lacaniana, o pós-estruturalismo francês e a teoria crítica da Escola de Frankfurt, ao mesmo tempo em que se torna imperativo classificar o marxismo que teima em se manter longe desse diálogo como dogmático e analiticamente ultrapassado.
Afinal, de onde mais poderia sair uma observação como a de que atualmente as pessoas sabem que estão sendo iludidas pelos mecanismos ideológicos e mesmo assim optam por acreditar nessa ilusão, senão de um autor revolucionário, iconoclasta e provocativo como Slavoj Zizek?
* Mestrando em Ciências Sociais pela UFBA.
Fonte da imagem de Zizek: https://brasil.elpais.com/tag/europa/a/167
Referências
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.
ZIZEK, Slavoj. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. Tradução de Luigi Barichello, São Paulo, SP: Boitempo, 2016.
____ . Primeiro como tragédia, depois como farsa. Tradução de Maria Beatriz de Medina, São Paulo, SP: Boitempo, 2011.
____ . Interrogando o Real. Tradução de Rogério Bettoni, Belo Horizonte, MG: Editora Autêntica, 2017.