No último dia 3 de outubro, foi lançado nos cinemas do Brasil, Joker ou Coringa, do diretor Todd Phillips. O longa já é considerado um dos maiores sucessos da DC. O brilhantismo da obra cinematográfica possibilita analisá-la em diversos ângulos, desde aspectos psiquiátricos e psicológicos, passando por questões sociais, políticas e econômicas. Focarei numa abordagem que combina alguns desses elementos. Boa leitura!
Numa sociedade que remete a New York dos anos 70 , Gotham City passa por altos níveis de distúrbio social. Os cidadãos sentem-se muito inseguros e não encontram uma classe política competente para lidar com as perturbações sociais. Tal incapacidade gera nas pessoas a desesperança nas instituições. Em momentos assim, de crise, a multidão tende a acreditar na emergência de uma personalidade forte e confiável, capaz de bater de frente com as estruturas e adversidades do sistema.
Falando sobre multidões, gosto da definição de Le Bon, em Psicologia das multidões:
“Em determinadas circunstancias, e apenas nessas, um agrupamento de indivíduos adquire caracteres novos, bem diversos dos caracteres de cada um dos indivíduos que o compõem. A personalidade consciente desvanece-se e os elementos e as ideias de todas as unidades são orientados numa direção única. Forma-se uma alma coletiva, sem dúvida transitória, mas que apresenta caracteres bem definidos. A coletividade transforma-se então no que, à falta de expressão mais adequada, chamarei uma multidão organizada ou, se preferirem, uma multidão psicológica. Passa a constituir um ser único e fica submetida à lei da unidade mental das multidões". [1]
Ainda, segundo Le Bon:
“ O que há de mais impressionante numa multidão é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, sejam quais forem as semelhanças ou diferenças no seu gênero de vida, nas suas ocupações, no seu caráter ou na sua inteligência, o simples fato de constituírem uma multidão concede-lhes uma alma coletiva”. [2]
Períodos de anormalidade e caos são gatilhos que podem levar as pessoas a adotarem comportamentos bastante imprevisíveis, considerados imorais numa determinada época. Estas atitudes veem à tona por que estavam ainda reprimidas ou são mudanças geradas ao sabor do contexto? Ou as duas coisas? Seja como for, a necessidade coletiva de encontrar uma solução rápida, sem esforços, sem o custo da paciência temporal, combina, muitas vezes, com a esperança do surgimento de um líder imponente que age contra a complexidade da civilização moderna.
Arthur Fleck, interpretado pelo genial Joaquim Phoenix, não é o protagonista que está preocupado com as injustiças sociais e econômicas, apesar de ter noção do que ocorre a sua volta. O objetivo dele é ser reconhecido. Não está embutido aí uma questão de luta de classe. Ele não leva consigo o espírito político de revolta. Muito menos é um cidadão engajado politicamente. A sua luta é pessoal, particular. Ao buscar ajuda psicológica e de fármacos está tentando ser normal perante a sociedade. Deseja seguir a profissão de palhaço e comediante, e ser valorizado por seu árduo esforço.
No entanto, Arthur tem um problema grave que é rir quando está nervoso, ansioso ou mesmo com medo. Estes sintomas são frutos de uma “crise de epilepsia gelástica”, algo que não tem controle. Isso o prejudica bastante em seu percurso. Mesmo durante a infância sofreu abusos familiares, gerando uma série de disfunções que comprometeram seu comportamento psíquico e social. Não tem como negar que estas causas tiveram um aspecto relevante na sensibilidade do protagonista, apresentando, inclusive, traços psicóticos.
Leitores, meu ponto aqui é que houve um casamento inesperado entre alguém infeliz na vida, frustrado profissionalmente, sem reconhecimento, colocado numa condição de mediocridade pela sociedade, e uma multidão sedenta por um desconhecido que conseguiu desencadear um confronto direto, aos olhos delas, com a elite política e econômica. O sofrido palhaço foi esse indivíduo que atacou membros da alta sociedade, mas ao acaso. O ato fortuito possibilitou a ascensão de seguidores que passaram a usar máscara de palhaço, criando uma identidade coletiva, um engajamento mais extremo contra autoridades e instituições de Gotham.
Este é o retrato de uma junção, uma afinidade contingente, entre alguém que buscava o sucesso e uma massa que desejava um líder, um transgressor, um salvador que atacasse as elites, o establishment, os mais favorecidos da pirâmide social, e que eliminasse a insegurança e o caos urbano.
No momento que o coringa realmente é aplaudido, exaltado, colocado nas alturas, ele ri, chega ao êxtase. Sim, sua figura se torna relevante à muitas pessoas; percebe que alcançou uma condição que nunca pôde ter, e a grande oportunidade de brilhar, mesmo no caos. Isto faz toda diferença no desfecho de um dos maiores vilões das histórias em quadrinhos.
Daí em diante é história...
Fonte
[1] LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. Tradução de Ivone Moura Delraux. Coleção Delraux, Pensadores, 1980, p.10 . Link: https://docgo.net/view-doc.html?utm_source=le-bon-gustave-psicologia-das-multidoes
[2] LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. Tradução de Ivone Moura Delraux. Coleção Delraux, Pensadores, 1980, p.12 . Link: https://docgo.net/view-doc.html?utm_source=le-bon-gustave-psicologia-das-multidoes
Fonte da imagem: https://www.metrojornal.com.br/colunistas/2019/09/25/diretor-de-coringa-comenta-possibilidade-de-filme-causar-surtos-de-violencia.html