O riso do Coringa ou notas sobre uma sociedade adoecida
- Equipe Soteroprosa

- 16 de out. de 2019
- 3 min de leitura

“Eu nunca fui feliz um minuto sequer em toda a minha vida desgraçada”. O enunciado do personagem Arthur Fleck, protagonista do filme Coringa dirigido por Todd Phillips e estrelado de modo impecável por Joaquin Phoenix retrata a angústia de um ser que se descobre no fundo do poço e decide botar fogo em tudo ao redor numa crise insana de euforia e loucura.
O presente texto não tem a pretensão de analisar os aspectos políticos e sociais da obra fílmica, ou sequer visa compreender os efeitos da exaltação do anti-herói. Antes, gostaria de destrinchar o riso do personagem. Parto da compreensão de que neste riso inadequado está contido inúmeros elementos representativos da sociedade contemporânea. Para quem não assistiu ao filme um conselho: assista! Alguns spoilers podem aparecer eventualmente neste texto, mas em nada atrapalham a experiência do expectador.
Henri Bergson em seu ensaio sobre o riso e a comicidade (2007) explica que uma das características fundamentais do riso é o seu aspecto social e agregador. Rimos em contextos de diversão, bom ânimo e contentamento. Ao assistir Coringa (Joker) percebemos uma outra face do riso completamente diferente da expressa pelo filósofo francês. O riso no personagem se manifesta como expressão de uma doença mental, ele ri de modo desvairado em situações nada condizentes com a comicidade, seu riso é inapropriado e não corresponde com as suas emoções, não denota alegria, pelo contrário, a narrativa fílmica nos apresenta um protagonista extremamente angustiado, pesaroso e entristecido. Apesar disso, de modo contraditório, a mãe do personagem o apelida desde a infância de “feliz”.
É gradativa a transformação do palhaço e humorista Arthur Fleck em Coringa. A metamorfose se dá em meio a uma soma de violências sofridas pelo personagem e a sede por reconhecimento que não é abrandada pelo silêncio da plateia que não ri de suas piadas.
Coringa nos ensina muito. Nos comove e ao mesmo tempo nos incomoda. Em primeiro lugar, o personagem foi apelidado de Feliz embora seja uma pessoa extremamente triste, isso me fez pensar no quanto as redes sociais nos impulsionam a transparecer uma alegria “fake”, sorrisos abertos e mentes arrasadas, imagens bonitas e almas vazias, à beira da insanidade que ora se manifesta em massacres sociais, ora se apresenta em pequenas crueldades diárias. O culto à felicidade e a obrigatoriedade de estar bem o tempo todo é uma constante na sociedade do espetáculo.
Rir de alguma pessoa para muitos é apenas manifestação de humor inteligente e sociabilidade, no entanto, quando se ri do outro, em geral, o objeto de riso é ridicularizado, escarnecido e minimizado. Expor uma pessoa ao vexame é uma maneira de oprimir e subjugar. Talvez não haja violência mais sutil do que o escárnio. Quando um programa de TV transmite o vídeo de Arthur Fleck em sua apresentação de stand up é nítido o objetivo de escarnecer o personagem, há ali a representação da culminância de um projeto de vida fracassado que sempre é alvo de desprezo, piedade ou chacota. Arthur Fleck é denominado Coringa pelo próprio apresentador do programa. A essa altura a metamorfose do protagonista se dá por completo, ele, pela primeira vez enxerga a possibilidade de sair no anonimato.
O filme comove porque é muito nítido o declínio daquele sujeito, alvo de inúmeras violências familiares e sociais desde a infância. Talvez a violência social mais crítica e responsável pela total decadência do personagem se dá quando o programa de serviço social que presta apoio psicológico ao protagonista tem a verba cortada e deixa de funcionar.
A revista Istoé[1] noticiou no dia 09 de outubro do presente ano o veto do presidente Bolsonaro ao projeto de lei que tornava obrigatório a presença de psicólogos e assistentes sociais em escolas públicas. Para além disso, o governo federal tem feito inúmeros cortes de verbas destinadas à saúde mental[2]. Essas notícias dispensam comentários, a revolta e indignação bloqueiam a escrita.
Somos seres decadentes e imperfeitos, essas características são essenciais à condição humana. Apesar de todo pessimismo que essa afirmação possa conter, o único caminho para sobreviver à essa verdade de modo minimamente digno é se fazer consciente dela. Autoconhecimento é o primeiro passo na direção oposta à loucura.
Fonte da imagem: https://mdemulher.abril.com.br/saude/risada-patologica-como-a-do-coringa-existe-neurologistas-explicam/
Referências:
BERGSON, Henri. O riso: Ensaio sobre a significacao da comicidade. 2.ed. Trad.: Ivone Castilho Benedetti. Sao Paulo: Martins Fontes, 2007. – (Coleção Tópicos)
[1] https://istoe.com.br/bolsonaro-veta-pl-que-exigia-psicologia-e-assistencia-social-em-escolas-publicas/
[2] https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2018/11/19/ministerio-da-saude-suspende-quase-r-78-milhoes-em-repasses-para-atendimento-a-saude-mental.ghtml



Excelente texto. Li-o em fevereiro de 2022, para estudar a redação do vestibular Fuvest de 2022, na qual o tema foi "As diferentes faces do riso.". Seu texto foi muito auxiliador, além de ter feito uma excelente análise do personagem Arthur Fleck. Parabéns!!!
Meus parabéns Dayane Tosta, escritora deste texto, o li em fev/2022 e o achei simplesmente ótimo!😊