O filme História de um casamento (2019) dirigido por Noah Baumbach é antes de tudo uma narrativa sobre o fim de um matrimônio e todas as nuances sentimentais e conflitos judiciais enfrentados por Nicole (Scarlett Johansson), Charlie (Adam Driver) e o filho Henry (Azhy Robertson) no processo de separação, partilha dos bens e guarda da criança. O cotidiano da vida familiar é representado de modo muito realista, verossímil e honesto no filme. Neste texto gostaria de tratar dos afetos vivenciados por Nicole e do seu processo de perda e reconquista da identidade no decorrer do casamento com Charlie. Para explicar a trama afetiva usarei alguns termos de Espinosa (2010).
O divórcio é uma realidade muito mais comum na contemporaneidade. As relações afetivas nos dias atuais deixaram de carregar o peso moral que obriga as pessoas a ficarem juntas independente das circunstâncias. A narrativa fílmica deixa subentendido um padrão extremamente atual sobre as relações afetivas: somos conduzidos a compreender o divórcio como uma fase do casamento. É como se a história de um casamento incluísse também a história do seu desenlace. De modo que o final feliz deixa de ser representado pelo arquétipo dos contos de fadas tradicionais “e eles viveram felizes para sempre”, somos apresentados a uma narrativa na qual a felicidade está totalmente condicionada à separação dos personagens.
Nicole é uma atriz de Los Angeles que conhece Charlie, um genial diretor de teatro, em Nova York e transforma toda a sua vida para viver ao lado dele.
Quando Nicole conheceu o seu futuro esposo, ela descreve anos mais tarde da seguinte forma: “a parte morta não estava morta, só estava em coma”, foi uma experiência na qual a vida voltou a ter sentido. O encontro com o outro tem o poder de revigorar e ressignificar toda a existência de uma pessoa. Mas todos os embaraços da relação que mais tarde culminariam no fim do casamento já estavam ali em potência, a personagem admite: “os problemas estavam lá desde o começo, eu só me deixei levar porque era simplesmente maravilhoso me sentir tão viva”.
O encontro de Nicole com Charlie resulta na entrega de ambos à relação. Todavia para Nicole essa entrega representa sua anulação e perda da identidade. Eles trabalhavam juntos na companhia de teatro que Charlie criou, ele era o diretor de peças que ela protagonizava, havia ali uma relação hierárquica que extrapolava o âmbito do trabalho e invadia a relação familiar. “Eu fiquei menor. Fui diminuindo. Nunca fiquei viva por mim mesma, tava só alimentando a vida dele”, diz Nicole ao perceber que não era mais dona da própria vida e sequer sabia o que era ter uma vida que pudesse ser chamada de sua pois estava vivendo em função de Charlie. Ela queria passar uma temporada em Los Angeles, ele sequer cogitava essa hipótese. Ela vivia à sombra do marido sem conseguir perceber o seu próprio valor.
O poema Diminutivo que queima da poeta e ilustradora baiana Rebeca Victória Rocha expressa perfeitamente a sensação da personagem, abaixo algumas estrofes:
e todos aqui são como trens completos
enquanto eu sou só um vagão
vago, sem ninguém
por medo
vou diminuindo
diminuindo
diminuindo
até quase não ser nada - para que não pudessem me tocar
quantas mulheres se diminuem
para que o corpo delas não os queimem?
e quantas mulheres se calam
para que o silêncio não os afogue em surdez?
eu sinto a dor
de cada mulher que deixou de ser sua
para vestir o hábito de pertencer à alguém
(ROCHA, 2019, p. 35 e 36)
O poema de Rebeca promove uma interlocução com as queixas de Nicole porque tanto o eu lírico como a personagem representam sentimentos e experiências extremamente humanas. A mulher desde muito nova é incentivada à mutilar a própria personalidade para se encaixar num padrão de feminilidade aceitável dentro dos moldes do casamento. Mesmo em relações aparentemente horizontais o homem é detentor de privilégios históricos que mais cedo ou mais tarde vão ser a causa da opressão feminina, isso porque as relações de gênero são perpassadas pelas relações de poder instituídas pela estrutura social do patriarcado.
A personagem Nicole vai gradativamente ganhando a confiança e empatia do expectador. Um terapeuta é consultado pelo casal para orientar o processo de divórcio e ele pede que cada um escreva uma carta dizendo o que o outro representa ou representou de positivo na relação. Para ele é importante valorizar e compreender por que o outro é importante em nossas vidas mesmo sabendo que isso não vai promover a união do casal. Nicole na sessão terapêutica se recusa a ler a carta que escreveu e isso faz com que o expectador tenha a imagem de uma mulher amarga, que não colabora, indiferente ao processo. No entanto, é possível fazer outra análise dessa situação. A protagonista inicia o filme com um “eu enfraquecido, esmagado pelo brilhantismo do outro”. Isso a coloca numa posição de autoproteção, não ler a carta é proteger o seu interior num momento de vulnerabilidade. Charlie só tem acesso à carta ao final do filme, depois de todo um processo de fortalecimento de Nicole, isso me leva a crer que para acessar o interior do outro é necessário que este outro seja dono da própria vida.
O casal tinha decidido inicialmente proceder de modo amigável sem a presença de advogados, porém Nicole muda de ideia e contrata uma advogada, Nora Fanshaw (Laura Dern). Sempre que uma mulher toma as rédeas da própria vida o mundo sai um pouco do eixo e isso causa estranhamento e incômodo. O primeiro adjetivo destinado a uma mulher que se posiciona de modo contrário ao homem é: louca! Somos levados a ter compaixão por Charlie e desprezo por Nicole. Esse olhar é típico da estrutura machista. Na minha experiência enquanto expectadora, a personagem foi crescendo e conquistando o direito de ser livre, foi ganhando o meu respeito, admiração e empatia, aos poucos eu, enquanto mãe solteira, me vi na posição de Nicole e sofri com ela os desgastes do processo de separação. O filme é magistral no sentido de construir uma narrativa que humaniza e dá dignidade à mulher, a tira da posição de ser subjugado e apresenta todas as dificuldades e conflitos vivenciados durante esse processo.
Espinosa (2010, p. 209) explica que “não desejamos uma coisa por julgá-la boa, mas, ao contrário, dizemos que é boa porque a desejamos. E consequentemente dizemos que é má a coisa que abominamos”. É o nosso desejo que faz com que o outro seja bom aos nossos olhos, por isso que quando Nicole se encanta por Charlie ela se entrega à relação e se dedica à pessoa que a retirou de um estado de apatia. Espinosa define o amor como uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior, portanto somos levados a associar o amor ao nosso objeto de desejo quando esse objeto nos afeta de forma a aumentar a nossa potência de agir (força por perseverar na existência). Por que Nicole ama Charlie? Porque Charlie provoca alegria em Nicole! E quando é que esse sentimento acaba e se transforma no contrário? Quando Charlie começa a sufocar os planos e desejos da personagem fazendo com que ao invés de alegria ela sinta tristeza e, consequentemente, diminuição na potência de agir, a personagem passa a odiar o seu cônjuge. “Odiar alguém é imaginá-lo como causa de tristeza” (ESPINOSA, 2010, p. 209). Esse sentimento é retratado no filme de forma gradual e ambos passam por esse processo.
Um dia a pessoa amada é a mais importante das nossas vidas. No outro é a fonte da nossa infelicidade. Charlie chega ao ponto de dizer que acorda todos os dias desejando que Nicole tenha um câncer ou morra atropelada. Essas flutuações de ânimo são próprias do humano. Uma mesma pessoa pode ser causa de alegria ou tristeza, amor ou ódio e a única coisa que nos cabe é compreender, observar, ter empatia e dialogar sobre como o outro nos afeta e como afetamos o outro.
Liliane Prata salienta em uma passagem do conto Cheiro de café queimado: “Nossa miséria interior não reconhecida: é ela que enferruja nossos relacionamentos, muito mais do que o tempo” (PRATA, 2019, p. 193 e 194). É preciso conhecer os afetos e sobretudo ser corajoso para assumi-los junto com as consequências que eles acarretam. Os homens precisam urgentemente reconhecer os seus privilégios históricos para quem sabe olharem as mulheres sob uma perspectiva de alteridade, isto é: compreendo o outro como um diferente de mim mas o encaro com o mesmo valor que tenho e o trato como um igual apesar da diferença.
Referências:
Imagem: https://www.uai.com.br/app/noticia/cinema/2019/12/09/noticias-cinema,253962/historia-de-um-casamento-lidera-indicacoes-ao-globo-de-ouro-confira.shtml
PRATA, Liliane. Ela queria amar mas estava armada. 1ª ed. – São Paulo: Instante, 2019.
ROCHA, Rebeca Victória. Diminutivo que queima. In.: MAIA, Maria Luiza (Org.). Corpo que queima: uma antologia de poetas baianas. Salvador, 2019. p. 35-36.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad.: Tomaz Tadeu. 3. ed. – Belo Horizonte: Auntêntica Editora, 2010.