Existem várias maneiras de entender uma obra de arte, desde o completo absurdo silêncio, na fronteira da própria ignorância, chegando até a pretensão dos grandes críticos, aquelas criaturas de um paladar privilegiado, um tipo de senso claro do que é belo ou feio. Apesar da variedade de olhares, e do modo como cada um interage entre si, quando o assunto é o campo político a arte infelizmente se dissolve em dois grandes blocos, dois momentos insistentes, embora ambos de um reducionismo irritante, como você vai perceber ao longo dessas linhas. O objetivo desse ensaio é um simples exercício estético, nada mais do que isso. Se você espera algo sólido, alguma correspondência entre palavra e coisa, como se a linguagem fosse apenas um meio que descreve alguma certeza lá fora, eu tenho que te dar uma péssima notícia: você veio ao texto errado, talvez até mesmo ao site errado. Ou seja, não leve muito a sério o que está prestes a ler, por favor!!! Lembre dos significantes dessa página e o quanto são arbitrariamente associados a outros significantes, gerando uma cadeia idiota de palavras. Se possível, avalie esse ensaio em termos de costura, como um tipo de tecido, ainda que ele não seja muito confortável de usar, no final das contas.
Entendendo a direita aqui como sinônimo de reacionário e, portanto, reduzindo o conceito ao limite da minha conveniência, vamos começar com nossa jornada comparativa com aquele grupo que enxerga na arte um grande perigo, um mal que deve ser evitado em certas ocasiões, quase como se fosse um grande e lindo oceano, embora cercado de tubarões. Segundo eles, uma pintura, uma música, um livro, ou um filme, podem esconder armadilhas, ou até mesmo ameaças ocultas nas sombras como, por exemplo, cenas fortes demais, imagens que podem abalar os pilares aparentemente sólidos da realidade, ou seja, o fundo ético pode ser ameaçado pelo elemento estético. Isso significa que precisamos ter cuidado com essa coisa chamada arte... é necessário ir devagar, porque nossa ética é o que importa, no final das contas!! Sem dúvida, os reacionários consomem a arte, mas esse é o ponto... eles consomem. A arte aqui é, no mínimo, um passatempo ou, no máximo, uma forma de educar e reproduzir valores considerados indispensáveis. Embora tendo sua utilidade, ela é sempre um campo suspeito, um espaço meio confuso, reservado, em sua maioria, aos marginais, aos deslocados, como se a arte acolhesse o que o mundo não acolheu, como se fosse um reservatório daquilo que não foi aproveitado pelos bons costumes. Embora reconheça a beleza de um Cézanne, além do modo como expõe suas pinceladas de forma crua e espontânea, suas banhistas sem roupa, todas elas reunidas na margem de um rio, podem passar uma péssima mensagem aos meninos e meninas que ainda preservam aquela doce inocência. Ainda que admirem o “Processo” de Kafka, podem também sentir um certo desconforto com aquela atmosfera desencantada, cheia de labirintos e angústia. Sem dúvida, “Veludo Azul” pode ser uma boa escolha de filme, mas não seria violento demais, estranho demais? Enfim, para o reacionário a estética precisa ser domesticada pela ética, caso contrário a arte pode acabar se tornando muito selvagem, descontrolada, corroendo aquilo de mais nobre e sólido no mundo.
Com a esquerda as coisas seguem um rumo um pouco diferente, apesar de algumas semelhanças aqui e ali. A esquerda não apenas acolhe a arte, mas faz dela uma ferramenta de combate, uma extensão de seu próprio desejo, um tipo de prolongamento de suas expectativas. Embora pareça incrível esse modelo, temos vários problemas no horizonte. Vamos aos exemplos, já que eles são ótimas formas de suavizar ideias abstratas e de difícil acesso. O filme Bacurau foi lançado em 2019 pelo Diretor Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, sendo Mendonça uma figura já bem conhecida por filmes como “Som ao Redor” (2012) e “Aquarius” (2016). Embora seja um material muito bem produzido, o que é óbvio a qualquer um com o mínimo de sensibilitade cinematográfica, os elogios ao filme Bacurau basicamente se resumiam a capacidade dos diretores de oferecer um retrato “fiel” do mundo, principalmente um recorte do Brasil contemporâneo e seus contornos políticos. Ao dizer que Bacurau é um excelente filme porque é politicamente relevante, projetamos na obra a mesma estrutura de qualquer tipo de mercadoria. No universo capitalista, tudo é desenhado sob medida, ou seja, nada excede, transborda, silencia. Se tenho sede, existem várias latas de coca-cola de vários tamanhos, apenas aguardando o meu desejo ser correspondido. Tudo é gerado, como já disse, sob medida, dentro de uma precisão quase matemática. Quando compro o ingresso e vou assistir o filme “Vingadores”, não estou esperando surpresas, silêncios, quebras... nada disso. Como qualquer produto, o filme foi desenhado também sob medida, especialmente para aliviar tensão e produzir um pouco de catarse depois de uma semana estressante. Esse seria o primeiro problema no modo como a esquerda acolhe a obra de arte: ela é reduzida a um elemento conveniente, uma pura ferramenta direcionada a resolver problemas ou aliviar consciências. Nada excede, muito menos frustra.
O segundo problema com a esquerda, sendo uma extensão do anterior, é de uma ordem mais filosófica, digamos assim. Seus militantes, em especial aqueles mais bem intencionados e de bom coração, entendem a obra de arte como um produto epistemológico, como se a verdade ou falsidade importassem no campo estético. Ou seja, Bacurau é um bom filme porque é verdadeiro. Enquanto a direita reduz a estética à ética, ao debate entre certo ou errado, a esquerda, ao contrário, reduz a estética à epistemologia, limitando tudo ao verdadeiro ou falso. Segundo Harold Bloom, um dos maiores críticos literários contemporâneos, e que faleceu infelizmente ano passado, Shakespeare não era um gênio porque representava bem a realidade do seu tempo ou porque tinha uma representação correta de como homens e mulheres operam no dia a dia. Segundo ele, ao contrário, uma obra de arte sempre é um “a mais”, um excesso, nunca podendo ser reduzida a qualquer tipo de contexto local ou a qualquer outra forma de relação.
Enquanto a direita (reacionária) afasta a arte como um potencial inimigo, a esquerda a aproxima demais, sufocando completamente seus contornos, sua própria possibilidade de ir além ou mesmo de frustrar expectativas. A direita seria muito mais uma mãe negligente em relação a arte, enquanto a esquerda estaria mais associada a uma mãe superprotetora e sufocante. A pergunta, portanto, é a seguinte: Entre o desprezo total e a superproteção exagerada não existe, talvez, um meio termo aristotélico? Sem dúvida precisamos dar um contorno ao objeto artístico, como um direcionamento político, por exemplo, mas isso é o suficiente? Uma arte é bela porque é certa ou porque é verdadeira? Ou, talvez, seguindo Oscar Wilde, uma pintura seja bela simplesmente porque é bela, carregando uma autonomia interna capaz, inclusive, de nos surpreender!!! Enfim, como disse no início, esse é um ensaio espontâneo, estético, um tipo de exercício que jamais teria coragem de se levar a sério, afinal, o que é um significante senão um pedaço de imagem sonora ou gráfica impressa num papel ou solta no ar? Quem leva a linguagem muito a sério não entendeu nada sobre seu funcionamento. Se ao ler esse texto sentimentos como raiva, ressentimento, ou coisas do gênero, tomaram conta de seu corpo, eu sugiro procurar ajuda imediatamente. Você pode acabar sofrendo da principal causa de sofrimento do mundo contemporâneo: a seriedade!!!
Referência da Imagem:
http://www.castana.cl/artista-incluye-a-su-gato-en-obras-de-arte-de-renombre/