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Foto do escritorThiago Araujo Pinho

A PATOLOGIA DA BOA INTENÇÃO: Quando a resistência se torna narcisismo




Em nosso mundo binário, onde a matemática se limita ao jogo simplificado entre 0 e 1, sem nada mais complexo do que isso, ou você respeita alguém (0) ou não respeita (1), simples assim. Existem duas opções óbvias e transparentes, além de disponíveis, ao menos quando se é alguém de bom coração Mas e se a coisa for mais sutil do que isso? Seria possível um tipo de desrespeito respeitoso? No ensaio de hoje vamos cruzar as fronteiras da conveniência, saindo um pouco daquilo que a maioria quer ouvir, ao mesmo tempo que arriscando um mergulho em águas nada cristalinas. Antes de qualquer salto precipitado em argumentos e teorias, vamos a uma pequena história recente, um episódio que marcou minha última semana e que precisa sair logo do meu corpo, caso contrário posso ter indigestão.


Uma bela manhã de sexta-feira, quando surfava inocentemente pelo Facebook, observando as postagens da minha rede de AMIGOS, quase sempre cheias de sorrisos retocados de boa intenção, memes e mensagens de autoajuda, sem querer tropecei em uma postagem curiosa de um professor da minha universidade (vou chamar aqui de Túlio). Naquele dia específico, Túlio desabafou sobre os problemas do governo Bolsonaro, além de sugerir a existência de um perigo grave nos bastidores, um risco dentro da própria democracia (postura essa que sempre teve ao longo dos anos, ao menos desde o começo de sua carreira). De repente, no meio de uma enxurrada de joinhas, corações e frases de incentivo, um aluno aparece na caixa de comentários, perde a paciência e deixa escorrer seu veneno ressentido por entre os dedos. Como resposta a esse exagero, quase uma agressão, Túlio, bastante ofendido, foi bem simples e direto ao reagir ao veneno daquele estudante. Ele basicamente escreveu que jamais abaixaria a cabeça ao fascismo de alguns alunos e que sempre iria continuar na luta, porque é essa sua meta de vida. Depois desse episódio polêmico, e que durou algumas outras trocas de farpa entre Túlio e o aluno, eu conversei com alguns colegas sobre o que tinha acontecido. Assim como eu, eles concordaram que a postura do estudante foi desrespeitosa, além de um gesto desnecessário e violento. Mas ao mesmo tempo senti algo estranho, como se alguma informação faltasse nessa história, tendo um tipo de mancha no canto despercebido de tanta polêmica. Alguma coisa começou a cheirar mal nesse cenário dramático, o que de forma nenhuma altera o fato básico de que a postura do aluno foi desrespeitosa, agressiva e desnecessária. Mas e desde quando fatos explicam alguma coisa?


Ao observar o padrão de comportamento de Túlio, e das postagens que normalmente fazia ao longo dos anos, eu percebi algo mais, algo além de uma simples linha ingênua entre respeito e desrespeito. Eu percebi que o comentário desrespeitoso do aluno acabou reforçando o argumento inicial do professor, como se a atitude do estudante já tivesse sido prevista por Túlio antes mesmo dela surgir, quase como se fosse um gesto dialético onde a tese já contém dentro de si a antítese. Em outras palavras, a postagem de Túlio foi elaborada como uma forma de provocação, e ao mesmo tempo uma armadilha. Ao ser pego pela armadilha, o aluno desrespeitoso, de forma indireta, não percebeu que fez uma homenagem ao professor, já que o desrespeito se transformou numa espécie de incentivo da postagem original. Ou seja, o aluno fez de si mesmo uma extensão dos argumentos do professor, servindo como um pretexto. Como resultado, postagem e crítica desrespeitosa se tornam uma única entidade, não sendo simples opostos.


Na psicanálise, área que considero bem mais radical do que a própria sociologia, ao invés da ingênua e óbvia repressão do desejo, temos o contrário, o desejo pela repressão, ao sugerir que a prática repressiva pode se apresentar como prazerosa, contendo até mesmo um sentido de fundo, por mais estranho que isso pareça. Em outras palavras, ao resistirem a mim, obstruindo o caminho do meu desejo, tendo minha fala e meus atos em risco, por exemplo, isso pode acabar gerando um tipo de efeito colateral que apenas reforça minha identidade de fundo. No caso do aluno, a sua resistência desrespeitosa apenas reforça a identidade do próprio professor, o que fica claro no momento que palavras como fascista aparecem. Ao dizer que o outro é fascista, o professor incorpora o estudante em seu próprio jogo, reforçando a ideia de que o desrespeito do aluno se tornou uma peça dentro do seu próprio tabuleiro. Sem dúvida, tudo isso que sugeri até agora não é uma característica da esquerda, já que o circuito do desejo não tem partido político. É possível observar o mesmo padrão dentro da direita reacionária, principalmente quando usam termos como comunista, petista, e assim por diante. O comportamento do outro é reduzido aos limites da minha própria história pessoal, fazendo da outra pessoa apenas uma extensão da minha conveniência, do meu EGO. Ou seja, a postagem, a crítica feita à postagem e a polêmica em torno da postagem, nada mais são do que um prolongamento de um EGO que busca definir a si mesmo, o que nos leva a conclusão de que o narcisismo é um tempero persistente nas redes sociais.


Nesse sentido, a resistência a mim se transforma numa homenagem aos meus próprios valores, já que minha identidade depende de um outro que resiste. A resistência, portanto, deixa de ser um simples meio e se torna um fim em si mesmo. Ao invés de sugerir a resistência como uma ponte, uma travessia, ou apenas um instante provisório de algo a ser alcançado, a própria resistência se torna o objeto de desejo, fazendo dela uma morada, um circulo vicioso. Como resultado, ela perde o seu perfil pragmático e político, e se torna um prazer individual, quase um jogo sem muita importância, ainda que digam o contrário. Em psicanálise, esse excesso que escorre por um comportamento, ou prática política qualquer, indo além de uma reação comum, se chama mais gozar, sendo um tipo de prazer que transborda os limites do que seria o previsível. O melhor exemplo, talvez, seja um filme de terror, em que o incômodo, a angústia e a frustração se transformam em um tipo de prazer escorrendo pelos contornos da cena.


Quando o ato de resistir perde sua dimensão pragmática, e se torna um fim em si mesmo, a resistência se torna um produto, uma estrutura circular, e pervertida, o que é possível perceber principalmente no Facebook e naqueles indivíduos que chamei de “indignados”. O indignado é uma nova criatura que surgiu nos bastidores da vida política, sendo um tipo muito específico de esquerda que apareceu nas últimas décadas, em especial depois dos anos 60, mas que agora ganhou uma proporção astronômica (em outros ensaios chamei de Esquerda Liberal). Esse novo grupo, grosso modo, jamais tem propostas claras, concretas, nem mesmo um conhecimento profundo daquela rede complexa que chamamos de vida, mas ainda assim se indigna com tudo o que acontece, fazendo da indignação (resistência) uma forma de identidade e não mais um meio direcionado a um fim sólido e visível. Nesse novo cenário, não importa o que aconteça, eu preciso deixar claro minha posição no tabuleiro. Esse novo grupo faz da resistência um fim em si mesmo, da mesma forma que o capitalismo transformou o desejo em um loop infinito. Se quero ir ao shopping, o objetivo não é a simples compra de algo necessário, mas o prazer de continuar caminhando por entre as vitrines. Em outras palavras, a compra não tem mais um simples proposito pragmático, ao atender um objetivo claro, mas ao contrário. O movimento da compra é prazeroso enquanto tal, independente da meta envolvida. Com a política acontece o mesmo. A resistência não apenas luta contra formas de desrespeito, mas se alimenta deles, o que nos leva a um espaço complexo (e dialético) de interações. Talvez a resistência não seja mais uma opção, muito menos uma obrigação, mas um prazer, na fronteira do entretenimento.


Isso não significa que devemos abandonar a resistência, mas é preciso ter cuidado, observando quais corpos se apoderam de certas palavras e práticas. Corpos ressentidos normalmente comprometem tudo ao redor, mesmo quando valores e mensagens importantes circulam por aí. Ou seja, nem toda forma de resistência deve ser válida, principalmente quando é administrada por um circuito desejante suspeito, ao fazer com que o desejo perverta a ética de fundo.


REFERÊNCIA DA IMAGEM:


https://jornalggn.com.br/artigos/10-notas-sobre-a-resistencia-politica-por-maister-f-da-silva/

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