La Casa de Papel completou a quarta temporada. É uma oportunidade ímpar de falar sobre a série, trazendo alguns elementos políticos e sociais contemporâneos. E alguns alertas perigosos.
A queridinha da Netflix escreve sobre vilões tendo uma trajetória, com suas dores e alegrias. E são protagonistas. Não nasceram maus ou não vieram do espaço. Eles possuem uma genealogia, dramas e problemas pessoais, comuns a qualquer telespectador. Somos comovidos e nos simpatizamos por suas histórias e suas personalidades. E por certos idealismos. Poderiam ter escolhidos outros caminhos que não o da ilegalidade, mas, por razões diferentes, optaram pelo que a maioria não faz. Eis o ponto que desejo explorar.
Atualmente, uma parte considerável das pessoas começa a acreditar que a organização da vida social é injusta. E, geralmente, elas percebem isso nas crises mais agudas, pois fazem emergir alguma obscuridade, antes escondida: há uma minoria se beneficiando demais da normalidade do sistema. Só percebem isso, pra valer, em períodos excepcionais, atípicos: recessão econômica, guerras, pandemias, desordem pública.
Surge, então, o diagnóstico geral de que a lei nem sempre é justa. Em tempos de desorientação ascendem figuras que apontam possíveis causas, prometem o restabelecimento da ordem e mostram os "verdadeiros" vilões do sistema: as elites políticas e econômicas. Elas, de acordo com a visão popular, permitiram a exclusão da maioria da população dos benefícios públicos e o favorecimento de minorias - grupos políticos, partidos étnicos, identitários, banqueiros, empresários.
Os vilões da série acabam ganhando força popular por escancararem os problemas da frágil engenharia social. Os representantes políticos são desmoralizados. Eles, em essência, deveriam ser exemplos na defesa dos direitos civis, sociais e humanos.
Mas o Estado não é um ente genérico dotado de um espírito coletivo. Pelo contrário, há pessoas concretas com interesses divergentes, perspectivas e visões de mundo contraditórias, das quais muitas não têm problemas em burlar regras para favorecer a si próprias; ou autoridades que, de forma pragmática, dizem agir pelo interesse da nação, mesmo lançando mão de instrumentos obscuros que justificariam suas intenções.
O professor Sérgio Marquina, o cérebro por trás dos assaltos, reconhecidamente um idealista, reforça a tese de que há pouca dessemelhança entre roubar o dinheiro impresso na Casa da Moeda da Espanha e o quanto de lucros, e outros favorecimentos econômicos, os bancos e financistas mundiais lucram. O ponto aqui, é uma das teses centrais do velho barbudo alemão, do século XIX, adotado pelo diretor de La Casa de Papel: no capitalismo, a classe dominante, a elite burguesa, opera o sistema político, de dentro e fora, interferindo na gestão dos governantes, o que inclui salvá-los em momentos de crise. Estados-nação devem assumir compromissos com cortes públicos ou austeridade, com a obrigatoriedade de pagar dívidas às organizações multilaterais que gerenciam os empréstimos regionais ou globais. Isso tudo, à revelia de um compromisso com o cidadão comum que sofre com salários baixos, desemprego, insegurança, inflação, juros altos. Reconhecer isso é um passo para uma insatisfação generalizada.
Toda a filosofia por trás da mente do professor é a de que os verdadeiros vilões não são seus amigos, mas as elites econômicas e políticas que, historicamente, sempre foram beneficiadas por práticas patrimonialistas e pelo conluio com os detentores do mercado, que exclui a maior parte da população dos benefícios da produção. Os produtores da série apostaram alto na linha tênue entre o legal e o ilegal.
Me permitam uma análise sociológica. O atual processo de globalização, resultado do desenvolvimento da tecnociência, financiado, em boa parte, por grandes empresários, excluiu e exclui muita gente. OK, é bacana assistir a uma série espanhola na Netflix (privilégio ainda para alguns), mas pergunto: quantas pessoas poderão conhecer os cenários, museus, catedrais medievais, pontos turísticos radiantes e a cultura daquele país? Quantos, de verdade, podem tirar férias com a família em um ambiente estrangeiro? Quantos podem frequentar restaurantes caros, e saborear aquelas comidas maravilhosas que nossos personagens favoritos degustam? E aqueles carros, que mais parecem naves espaciais? Quantas pessoas têm acesso às tecnologias que vemos em filmes americanos, ingleses ou sul-coreanos? Resposta: uma ínfima minoria. Verdade que alguns destes realmente vieram de baixo, saíram de uma condição precária de vida; mas a maioria da minoria já vem de uma situação familiar estruturada, herdando um capital econômico que respalda um futuro de oportunidades amplas ou escolhas abundantes. O fato é que maior parcela da população, por gerações, jamais alcançará algum status social que possibilite escolhas amplas. Ainda conviverão com mínimas oportunidades. Ou nem isso.
É bom não ignorar que a falta de oportunidades iguais vale tanto ao cidadão comum conservador, e até reacionário, quanto o mais liberal ou progressista. A exclusão social é factual, e não uma mera questão paranoica ideológica.
Caros leitores, amantes da simbologia dos mascarados de Dalí, que protestam nas ruas e na rede virtual, aqui e acolá sei que muitos de vocês incorporam um ressentimento coletivo, sintoma de mazelas socioeconômicas, e aprovam a ideia de que o cenário precisa mudar, e se continuar pode piorar. Talvez o momento nos faça repensar como foi construído os alicerces da vida moderna, com seu sistema político e econômico cheio de furos e com uma lógica excludente, abissal e desumana. Ou se não repensarmos, o horizonte é o caos e a degradação dolorosa de um padrão de sociedade que ainda consegue sobreviver por aparelhos. Mas mesmos estes não duram para sempre.
À guisa de conclusão, a explosão de audiência da série mundo afora, e as grandes manifestações, protestos e ativismos globais, excetuando os aproveitadores de plantão, usando trajes e máscaras dos personagens, que são os vilões e protagonistas, é um enorme sinal de alerta às autoridades sobre as fraquezas institucionais do estado de direito e do elitismo político e econômico alienados de como sobrevive a maior parte da população. Não se enganem: a distância entre a ficção e realidade não é tão distante. Muitos se encorajam. Estão dispostos a pagarem o preço pela indiferença?
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